Sobre obscenidade e um certo sanduíche

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Um vídeo que desencadeou uma polêmica. Antropólogo fala sobre transgressão sexual e aponta que internet está mudando nosso padrão de intimidade

Uma mulher coloca um vídeo na internet ensinando a fazer o sanduíche de boceta. Com a naturalidade de um programa culinário, ela passa maionese e pão em sua vagina e discorre sobre a delícia que é a receita. Em pouco tempo, o vídeo bombou na internet, alcançou o trending topics do twitter e foi foco de muitas paródias e comentários. As reações eram sempre zombeteiras e de execração. Afinal, a mina colocou na internet, “pra aparecer”, e, provavelmente, “tem algum problema mental”. Sim, coisa bizarra.

Será assim mesmo, simples?

Pois bem, há uma repulsa quando o sexo bizarro é debatido, até por pessoas que militam pelos direitos de minorias sexuais. Mas essa “bizarrice” funciona como uma espécie de jogo: quando reforçamos o que deveria estar em cena em relação aos desejos e práticas sexuais evocamos o que não deveria estar. Ou seja, o obsceno, como o tal sanduíche.

Isso porque a obscenidade é uma transgressão, apesar dos contornos dessa paisagem estarem mudando: o erotismo está cada vez mais presente e o ato de transgredir é normalizado pelo mercado com a proliferação de imagens sexuais. E prazeres como o desse sanduíche são vistos como “perversão sexual”, reduto do privado. Ou de lugar algum.

“Diria que têm um lugar sim: o lugar daquilo que é visto como ilegítimo, perigoso, ridículo; daquilo que é considerado como algo para se temer ou para rir”, afirma o antropólogo Jorge Leite Jr. Ele é autor do livro “Das maravilhas e prodígios sexuais – A pornografia ‘bizarra’ como entretenimento”.

“O bizarro tem um lugar: o lugar amaldiçoado, no qual qualquer pessoa que lá esteja também é vista como maldita. A ideia de uma sexualidade perigosa, anormal e poluidora é fundamental para servir de oposto constitutivo de uma sexualidade  ‘sadia’, ‘boa’ e ‘normal’. Ou seja, para que nos consideremos bons e normais, temos que considerar outros como maus e anormais”, completa.

Tendo isso em mente, pense em uma coisa: não vemos pessoas desfilando o seu “orgulho escatológico” nem confessando em voz alta outros prazeres enquadrado no “bizarro”. Não existem muitos debates acadêmicos sobre essas práticas, a não ser para justificar o seu banimento ou rotulá-las em “perversão” e “parafilia”.

É, sexo parece ser uma coisa muito séria.

Rir de que?

Se para a nossa cultura o sexo é algo tão sério, a pornografia investe neste campo classificando-o como “bizarro”.  E espetaculariza a tal “perversão” em relação ao seu oposto, o sexo “convencional”. Nessa lógica, o riso e a diversão são elementos fundamentais. De acordo com Jorge Leite Jr., o riso (e também a execração) demonstra o desprezo e a desqualificação de tudo aquilo que vai contra nossos valores.

“Aliás, não é por acaso que vemos tantas cenas de violência em nosso cotidiano e nos indignamos muitíssimo menos do que quando vemos uma cena de uma pessoa dando prazer a si mesma. Talvez o que deve nos indignar seja o fato de ficarmos com raiva ou acharmos ridículo alguém dar prazer para si mesma, em um vídeo que pode ser visto por milhares de pessoas”, diz o antropólogo.

Ele continua: “Talvez o que tenha chocado no vídeo da garota fazendo o sanduíche não seja o fato dela misturar comida com sexo (embora isso ainda possa chocar muita gente), mas o fato dela fazer isso em um vídeo na internet; pois, atualmente, mais do que nosso padrão de sexo, o que a internet está transgredindo é nosso padrão de intimidade”.

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