Ora, os golfinhos

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Em nome do “livre” comércio, OMC proíbe consumidores norte-americanos de receber informação sobre a comida que consomem — e as mortes que ela provoca

Qual a lógica por trás das decisões adotadas pela Organização Mundial do Comércio (OMC), a instituição multilateral que fixa regras para as trocas mercantis entre os países? Elas sempre beneficiam os países mais poderosos?

A resposta é não. Em resolução adotada ontem (19/9), a OMC favoreceu grandes empresas pesqueiras mexicanas, derrotando consumidores norte-americanos preocupados com a preservação dos golfinhos. Mais que o poder dos Estados, pesou uma conhecida ideologia. Aquela mesma, para a qual o lucro é o principal objetivo da atividade humana; e o comportamento egoísta, a mola propulsora do progresso.

A polêmica está relatada, em detalhes, no site do Public Citizen, uma ONG que atua em favor dos direitos sociais, da natureza e de novas formas de democracia. Há anos, ativistas e associações de consumidores preocupam-se com mortes de grande número de delfins (inclusive de espécies ameaçadas) na captura industrial do atum. Mobilizados, eles obtiveram do Congresso de seu país, a partir dos anos 1990, medidas brandas de proteção dos mamíferos aquáticos. Estas salvaguardas foram derrotadas ontem, pela OMC.

Dois fatores tornam os golfinhos vulneráveis à pesca do atum. O primeiro está ligado ao descuido e a busca de produtividade máxima, pela pesca industrial. Os delfins acompanham costumeiramente, pelos oceanos, os cardumes de atum. Esta associação ocorre principalmente nas regiões tropicais do Oceano Pacífico — a costa oeste do México, por exemplo. Embora os golfinhos nadem em outra profundidade, próximos à superfície, a captura do atum não toma medidas para protegê-los. Eles acabam presos às redes e mortos.

Em outros casos, não se trata de acidente. Por conhecerem a proximidade entre as espécies, certos métodos humanos de caça de atum usam deliberadamente os golfinhos para monitoramento dos cardumes. Lanchas e helicópteros são usados para encontrar os delfins, bem mais visíveis. Uma vez encontrados, eles são cercados com redes. Sabe-se que os atuns, mais abaixo, serão capturados. Este método multiplica, é óbvio, os riscos de morte dos mamíferos.

A proteção adotada por associações de consumidores é de natureza voluntária e informativa. Atribuem-se selos de certificação às empresas que, além de não manipular os golfinhos na pesca do atum, tomam providências para evitar captura acidental. Estabelecem-se diversas formas de verificação. Autoriza-se as empresas certificadas a estampar, nas latas de atum vendidas no varejo, os selos.

Nenhuma lei proíbe a venda de atum cuja pesca atinge os golfinhos. Mas, devidamente informada, a opinião pública rejeita os produtos sem selo. Ontem, a OMC proibiu a estampa. Considerou, portanto, que o “livre” comércio está acima da liberdade (e do direito) à informação. Se a decisão for mantida, não poderá haver, nas latas de atum vendidas nos EUA, a partir de 2012, nenhuma informação sobre os métodos empregados na pesca.

A Public Citizen anunciou que exigirá recurso contra a decisão. Uma nota lembra que a luta pelo direito de não atingir os golfinhos tem quase 20 anos. Em 1999, foi uma das vertentes que contribuiu para os primeiros grandes protestos populares contra a OMC — a chamada “batalha de Seattle“, precursora do movimento altermundista.

A morte de golfinhos não é o único problema associado à pesca do atum. Presentes em enormes cardumes, que habitam mares de todo o mundo, as várias espécies deste peixe oferecem uma carne firme, especialmente saborosa, de fácil comercialização em latas. Os espécimes são grandes, podendo atingir 300 quilos.

A pesca artesanal com vara, que prevalecia até os anos 1960, foi substituída pela caça com redes, em embarcações cada vez maiores. Embora as estimativas sejam falhas, devido à presença de um grande mercado paralelo, estima-se que, nas últimas cinco décadas, a captura tenha saltado de 300 mil para 4 milhões de toneladas ao ano.

A abundância mundial do atum não resistiu e tal voracidade. Nos últimos dez anos, os cardumes começaram a minguar. Em algumas regiões, calcula-se que tenham se reduzido a 10% da exuberância registrada até a metade do século passado. Diversas espécies entraram na lista das que enfrentam risco de extinção.

A decisão de ontem da OMC ajuda a compreender o que promove tais processos devastadores. As importantes conquistas do consumo consciente são permanentemente ameaçadas — e muitas vezes vencidas — pelo apoio que instituições internacionais oferecem ao imediatismo e ao cálculo egoísta. Será preciso sobrepujar estas lógicas e instituições, para ir além do binômio cantado pelos Titãs: “homem primata / capitalismo selvagem”…

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Um comentario para "Ora, os golfinhos"

  1. joão fernandes lucho melgarejo disse:

    leio que na suiça um técnico mais aberto está recomendando releitura de Marx, e com isso melhor comprrender talvez, não apenas as complicações do capitalismo, como quem sabe uma nova abordagem. em verdade o capitalismo é um sistema perverso e falido. o que tem isso com a omc? ora é como a onu, é uma das partes do poder do capital, ditando regras que beneficiam apenas o capital e o poder por ele gerado. ninguém está preoupado com os golfinhos, com os palestinos e com os arabes de modo geral, exceto se isso der lucro. quando os golfinhos não mais existirem eles procurarão outro rumo. ainda não vimos tudo.

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