Freirina, os porcos e o prato de comida em sua mesa

Um dia, transnacional anunciou que construiria, diante do pequeno povoado chileno, instalações para abater 7 mil animais por dia. Crônica da resistência e do que ela tem a ver com nossos hábitos quotidianos.
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Texto e Fotos: Elaine Santana 

Freirina é o nome de um pequeno povoado situado na província de Huasco, no chamado “pequeno norte” do Chile. Fundado em 1752, é uma das localidades mais antigas da região. Reúne atualmente cerca de 5 mil habitantes, apenas. Fica na província de Huasco, banhada pelo rio de mesmo nome, na III Região de Atacama. O clima é semi-desértico costeiro, sofrendo influências do deserto e do oceano. A população vive da agricultura (cultivo de oliveiras para fabricação de azeite e azeitonas para consumo local e exportação), pesca e turismo. Influenciada pelo Pacífico, a região floresce na primavera: a paisagem árida dá lugar ao deserto florido.

Agrosuper é o nome da holding que abriga as marcas Super Cerdo, Super Pollo, Sopraval, La Crianza e Super Salmón. Cria porcos, galinhas e salmão em massa, para consumo nacional e internacional. Tem escritórios no Brasil, México, Estados Unidos e nos continentes asiático e africano. Em 2011, a empresa foi responsável por 72% da comercialização de porcos no mercado interno e por 78% das exportações de porcos no Chile. Seus negócios também representam 60% do mercado granjeiro chileno e apesar de somente recentemente ter iniciado produção de salmão, já possui uma gorda fatia do mercado nacional. Tem planos de abrir seu capital e lançar ações na bolsa.

Em 2007, os caminhos de Freirina e da Agrosuper cruzaram-se para além do supermercado. A empresa iniciou a construção da maior instalação para criação industrial de porcos da América Latina — um planta capaz de abater 7 mil animais por dia. Comprou 70 mil hectares de terra, situada justamente onde está parte do deserto florido. A promessa de transplantar as espécies nativas, preservando a flora local, não foi cumprida. Destruiu e continua destruindo toda a extensão de onde pretende construir sua enorme fábrica (este vídeo feito em 2012 pelos moradores de Freirina, mostra um trator passando por cima do local onde o deserto floresce). Também quebrou a promessa de construir um parque para proteção ambiental.

Um dia, a cidade amanheceu sem acessos para entrada do suposto parque. Ali foi construído um dos galpões para os porcos. Um jornal local chegou a noticiar o fato em 2008, e a população fez um abaixo-assinado. Foi ignorada pela empresa e pelo governo. Entre 2008 e 2009, a Agrosuper foi denunciada inúmeras vezes pelos moradores, pela extração ilegal de água doce da região. Em maio de 2010, o prefeito da cidade, Roberto Bruzzone, deu à empresa o acesso e o direito de uso de quatro poços de água.

Por fim, em outubro de 2011, quando a planta da Agrosuper entrou em operação, o mau cheiro produzido pelos porcos e pela falta de tratamento das fezes e urina dos animais fez com que os moradores de Freirina juntassem forças para lutar contra a empresa e proteger o bem-estar do povoado e o meio-ambiente. Nos meses seguintes, com a piora do mau cheiro e os resultados infrutíferos, nas inúmeras reuniões com membros da diretoria da empresa e do governo, os moradores ameaçaram fechar os acessos à fábrica, impedindo a chegada de alimento aos animais e gerando prejuízos financeiros imediatos à Agrosuper.

Em 19 de maio de 2012, as ameaças foram cumpridas: os moradores criaram oito barreiras, fechando todos os acessos à planta e impedindo, durante cinco dias, que comida chegasse até os porcos. Os funcionários abandonaram a fábrica, a polícia foi chamada, houve confronto com a população. Dois moradores ficaram gravemente feridos (um deles, cego de um olho). Em represália, dois carros da polícia foram incendiados. No quinto dia de bloqueio, o ministro da saúde, Jaime Mañalich, divulgou alerta sanitário, anunciou que a empresa teria seis meses para retirar os 480 mil porcos do local e fechar a fábrica. Os moradores comemoraram. E a batalha parecia ganha.

Algumas semanas mais tarde, no entanto, a comunidade começou a denunciar ao governo e aos meios de comunicação que a Agrosuper, valendo-se de seu tamanho e poder, havia iniciado manobras para permanecer na região.

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Cheguei em Freirina, por coincidência, num dia decisivo. Bruzzone, o prefeito, cuja empresa de transporte presta serviços para a Agrosuper, havia convocado um dia do plebiscito a respeito da permanência da empresa, sem cumprir as exigências da lei. A data foi anunciada com menos de 30 dias de antecedência e divulgada apenas na cidade de Copiapó, a 177 km de Freirina.

Urna e mesárias

Temendo assistir impune à fraude dos resultados, a população organizou uma consulta popular paralela, que aconteceria no mesmo dia da oficial. Um ônibus fretado estacionava do outro lado da praça quando cheguei. Sob aplausos e assovios, cerca de 50 pessoas chegavam para votar. Aos interessados, os mesários explicavam o processo, examinavam documentos e indicavam a urna onde as cédulas deveriam ser depositadas.

Mesária explica sobre votação para cidadã de Freirina

resultado do plebiscito oficial foi de 121 votos a favor da saída da empresa da região, contra 223 a favor da permanência. O resultado do plebiscito da população foi de 1007 votos a favor da saída da empresa e somente 63 a favor da permanência. Com as denúncias contra o prefeito, a baixa participação popular na consulta popular oficial e os resultados surpreendentes na consulta do povo, nenhuma ação foi tomada a partir dos resultados do plebiscito organizado por Bruzzone.

Dois meses mais tarde, confirmando as suspeitas da comunidade, o gerente de projetos da Agrosuper, declarou aos jornais que a empresa estava buscando resolver todas as questões de mau cheiro, para mostrar que poderia operar sem problemas. O executivo-chefe da empresa, Gonzalo Vial, declarou que a única razão para criar a planta em Freirina foi… criar empregos para a população. Os habitantes garantem que a criação de ocupações dentro da empresa foi mínima e ainda assim, a maioria dos postos era temporária.

Em entrevista ao jornal El Mostrador, Mauricio Arancibia, vigário de Copiapó que viveu 9 anos em Freirina disse que ficou tocado com o impacto da Agrosuper no entorno da VI Região de O’Higgins, no sul de Santiago (onde Agrosuper tem a maior parte de suas plantas). “Por isso, quando o gerente de projeto, Hugo Würth, nos pediu apoio para aproximar-se da comunidade e que bendicéssemos o projeto, eu lhe disse não”, comentou.

No final de julho, contratada pela Agrosuper, uma consultoria em responsabilidade social, a Gestión Social, começou a operar na região, em busca da criação de um canal de comunicação entre os moradores de Freirina e a empresa.

Yahir Rojas, um dos líderes do movimento socioambiental Huasco Conciente (ex-Freirina Conciente) me disse, em entrevista, que a Gestión Social, faz parte do grupo Tironi, conglomerado lobista que atua com duas caras. Tenta apaziguar os ânimos de comunidades em conflitos com seus clientes. Ao mesmo tempo,  faz lobby junto ao governo para que este lhes dê pareceres favoráveis. O objetivo é continuar na região de Freirina, apesar dos graves problemas ambientais apontados pelo movimento. O site da Tironi confirma a associação.

Segundo Rojas, um bom exemplo dos resultados da atuação da Tironi pode ser observado na região de Alto Bio Bio. Lá, nos início dos anos 90, indígenas Mapuche recusavam-se a sair de seu territórrio sagrado e ancestral, para que este fosse inundado para a criação de uma hidrelétrica. Acabaram sendo removidos à força, enquanto membros do governo eram destituídos de seus cargos para que o projeto fosse aprovado. Hoje os Mapuche desta região vivem na mais completa miséria e dependem de doações do governo para sobreviver.

Rojas, no entanto, garante que Freirina quer a empresa longe da região, independente do mau cheiro. “Especialistas projetam um consumo pela empresa de mais de 6,75 milhões de litros por dia, além da projeção de abatimento de mil porcos por hora, a emissão de toneladas de dejetos químicos no meio ambiente, especialmente sobre as bacias hidrográficas dos afluentes do Rio Huasco e seus canais, sem contar o risco de contaminação iminente das nossas águas pelas fezes e urina dos porcos”.

Mas a verdade é que a luta contra a Agrosuper é apenas um dos problemas enfrentados pelos moradores da região e ao longo dos meses de conflitos com a empresa, a população de Freirina, passou a entender a importância de aumentar o poder de seu movimento por unir-se a outros com finalidades comuns: garantir a preservação do rio e do meio ambiente e assegurar o bem estar de gerações futuras. Conjuntamente, estes movimentos vêm fazendo coro, em todas as regiões chilenas, exigindo um país que deixe de atender somente aos interesses das grandes corporações e sua busca desenfreada por lucro e que passe a ser governado por pessoas, para pessoas.

E você, leitor, já parou para pensar de onde vem a carne que consome e que impacto a produção gera para o meio ambiente e para as comunidades que vivem próximas aos criadouros? Você sabe como a carne que você coloca no seu prato é produzida? Segundo Rojas, uma das consequências positivas da luta contra a Agrosuper, foi justamente a população se informar e se inteirar sobre o processo de produção da carne e os desastres socioambientais produzidos em larga escala por onde se estabelecem a Agrosuper e outras empresas.

Quando consumimos sem consciência e responsabilidade, financiamos empresas como a Agrosuper.

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6 comentários para "Freirina, os porcos e o prato de comida em sua mesa"

  1. Francisco Zepeda disse:

    Mi madre aparece en una de las fotografías….soy un habitante de Freirina agradecido e impresionado por el apoyo que se ha conseguido para la causa. Chile sufre una de las más lamentables caricaturas de democracia…nuestros pueblos originarios, los estudiantes, las comunidades en busca de dignidad, etcétera…no son escuchados. Gracias por ayudarnos a mantener la fé.

  2. É, acredito que temos que informar, bem informados, podemos fazer escolhas éticas, conscientes e responsáveis. Quanto mais pessoas souberem do processo por trás do que comem, do que consomem, mais caminharemos para um mundo (e governos) menos controlado por grandes corporações.

  3. Pois e, a maioria da populacao mundial nao quer saber de onde vem sua comida nem para onde vai seu esgoto. E mais facil reclamar da poluicao, das mudancas climaticas e do governo que olhar para seu proprio umbigo. Por isso aboli a carne ha anos e cuido do que entra em casa mas quantos seguem a mesma coisa?

  4. a verdade…… parabéns….

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