Falta uma esquerda que vá além da negação

Bolsonaro tenta evitar mais cortes desgastantes – porque sentiu o trauma das ruas, em 15/5. Está na hora de um programa alternativo, capaz de superar a lógica cinzenta do “ajuste fiscal”

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Por Antonio Martins

Uma ideia política está a ponto de se tornar hegemônica quando pauta as ações, e o discurso, de seus próprios adversários. A defesa dos serviços públicos e dos direitos sociais – em especial o direito à Educação – são candidatos a cumprir este papel. Quem o demonstra é o próprio governo Bolsonaro. Numa reunião de ministros, realizada terça-feria (21/5) em Brasília, Paulo Guedes – vejam só quem – esforçou-se em prometer que tentará evitar, a qualquer custo, novos cortes nos gastos sociais do Estado, em 2019. O ministro, todos sabem, defende o Estado mínimo e a privatizar a Educação, a Saúde, a Água, os presídios, a polícia, tudo. Por que, então, viu-se obrigado à hipocrisia?

A resposta é óbvia. O governo sofreu um grande baque, com a manifestação nacional dos estudantes, em 15 de maio. E teme receber uma nova bofetada nas ruas, na quinta-feira que vem – especialmente, se fracassarem os “protestos a favor” que prepara para o domingo. Por isso, por enquanto, Paulo Guedes tentará evitar novos cortes, enquanto a pressão das ruas persistir.

Mas o que isso revela de mais profundo, sobre o cenário sombrio em que vivemos? Os fatos demonstram que há uma brecha. A defesa dos serviços públicos permite dialogar mesmo com a população que permaneceu confusa, ou que votou no ex-capitão. É preciso abrir mais esta janela – algo que a esquerda institucional não tem feito. Um texto que Outras Palavras publicou ontem, com satisfação, ajuda a compreender e tirar proveito da oportunidade. É obra do economista Eleutério Prado, professor titular de Economai da USP e observador arguto, capaz tanto de enxergar os fatos emergentes quanto de relacioná-los com a teoria.

Eleutério provoca o pensamento econômico conservador. Para este, a ação do Estado é ao menos inútil – e provavelmente nociva. Mesmo numa situação de crise como a que vivemos, bastará não interferir no mercado para que este – e sua célebre “mão invisível” – restaurem o chamado “equilíbrio”. Como a economia está deprimida e os preços baixos, os próprios capitalistas, movidos por seu interesse egoísta, farão (sempre segundo a crença na “mão invisível”) um serviço socialmente útil. Voltarão a investir, aos poucos. O ganho de uns estimulará os outros. Ao fim, tudo se arranjará – graças às molas do lucro e do interesse egoísta.

Nada disso funciona, há muito, e o texto de Eleutério explica por que. Em certas situações, o capitalismo desemboca em depressão. Nesses casos, a mão invisível funciona ao contrário. Nenhum capitalista investirá enquanto os outros não o fizerem primeiro. Todos sabem que para reativar os negócios é preciso investir na produção: comprar mais máquinas, gerar novos postos de trabalho, aumentar o poder de compra da população. Mas ninguém quer ser o primeiro a fazê-lo – porque, segundo a lógica do interesse egoísta, é um risco absurdo, que não vale a pena correr.

Nessas situações, explica Eleutério, a intervenção do Estado é ainda mais necessária. Este – o Estado – não é movido pelo interesse egoísta. Pode ter como objetivo o Comum. Pode, além disso, criar moeda e crédito. Não se trata apenas de teoria. Há um acúmulo de experiência empírica. Todas as grandes recuperações econômicas, nos últimos cem anos, partiram de ações do Estado e de alguma distribuição de renda. Sempre que ela não ocorreu – como agora – ou não houve recuperação, ou ela foi tímida: um voo de galinha.

Aqui entra a estupidez – “primata”, como diria Paulo Henrique Amorim – de Paulo Guedes. Num cenário em que só o investimento público salvaria a economia, Guedes quer cortar o gasto do Estado. Acredita na mão invisível. Além de primata, é um primitivo. Não compreende sequer o pensamento de Adam Smith, do século XVIII.

Tudo isso impõe um desafio à esquerda – e revela uma lacuna que precisa ser urgentemente preenchida. É preciso insistir na tecla dos direitos sociais e dos serviços públicos – e passar à ofensiva. A agenda negativa e reativa é sempre insuficiente. Ela só tem sentido se somos capazes de acrescentar, também, uma alternativa. No Brasil, significa confrontar os dogmas cinzentos da ortodoxia liberal. Significa dizer que há um horizonte. Mas que ele impõe a lógica dos direitos, em vez da dos sacrifícios. Criar, em vez de cortar. Dividir a riqueza, ao invés de concentrá-la.

Desdobra-se em ações opostas às de Bolsonaro e Guedes – mas capazes de dialogar com a população. A agenda de retirada de direitos está visivelmente desgastada. Mas só será derrotada, de fato, quando surgir uma agenda alternativa. Nos treze anos em que esteve no poder, a esquerda institucional foi pouco capaz de executá-la – inclusive devido a seus compromissos, que ao final a condenaram.

Esta agenda significa, por exemplo, um plano de reconhecimento das periferias – com vastos investimentos em urbanização, moradia, arruamento, segurança cidadã, cultura. Significa transportes públicos, urbanos e de longa distância. Expansão das redes de metrô, reconstrução da rede ferroviária (com novas tecnologias). Possibilidade de viajar o país, do Sudeste ao Nordeste, em poucas horas, várias vezes por ano, em trens de alta velocidade. Significa resgatar o SUS. Significa fazer da Educação pública a Educação de excelência, desejada por todos e gratuita para todos, capaz de aproveitar o acúmulo criado em décadas, a partir de educadores como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire.

Este programa, infelizmente, ainda não existe. Em sua breve presença no poder, e apesar de suas conquistas inegáveis, a esquerda institucional não foi capaz de propô-lo. É hora de dar um passo adiante. Quem sabe, não o fazemos a partir agora, na esteira da grande disputa pelas ruas que marcará os próximos dias.

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