As cores da melancolia feminina

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Em “Melancolia”, seu novo filme, Lars Von Trier fala sobre a singularidade da mulher e o desejo feminino dialogando com a iconografia da arte alemã

Por Luiza Jatobá

Prólogo

Lars Von Trier é um contador de histórias. O que está em jogo na narrativa do seu ultimo filme, Melancolia, é que o espectador está programado desde o prólogo do filme para esperar uma fatalidade. São aqueles dez minutos que mostram uma série de quadros reverberando imagens de pintores alemães, flamengos, ingleses, sobretudo Peter Bruegel.

O mal supremo, maior que tudo e todos, é o planeta Melancolia que vai colidir com a terra. Na imaginação medieval, é o planeta Saturno que influencia os melancólicos. O clima dos quadros apresentados nos primeiros dez minutos do filme é soturno, vestido branco na atmosfera noturna, mancha branca no crepúsculo. O desastre está por vir.

Há diversas associações visuais e musicais com Richard Wagner e o mito do amor fatal de Tristão e Isolda. Quando se fala em Melancolia, uma das primeiras associações é com o quadro de Albrecht Dürer (1514) de mesmo nome, em que uma personagem feminina alada é a que encarna o temperamento melancólico, numa paisagem obscura com muitos objetos: um anjinho, um cachorro enrolado a seus pés. Mas há um outro quadro de um contemporâneo de Dürer, Lucas Cranach, também alemão, também chamado Melancolia (1532): nele, uma figura feminina de vestido vermelho, também alada, descasca uma varinha mágica de bruxa, o mesmo gesto que Justine e o sobrinho farão para construir a cabana mágica, na sequência final do filme.

O vermelho do vestido do quadro traz à tona o desejo, indicando que, nessa figuração da melancolia, a dinâmica erótica substitui a imobilidade meditativa de Dürer. A colagem de quadros apresentados no prólogo do filme tem muito desse fundo escuro com a figura branca. Num deles, Justine está andando de perfil tendo intensas folhagens verdes ao fundo e, mais atrás, o alvorecer. Neste quadro, Justine está arrastando os fios de um novelo cinza que, na festa de casamento, vão atrapalhar seus passos. O impedimento de andar direito também é sugerido no quadro de Cranach. Há indícios de que a jovem é manca, o que alude à noção de castração. Justine, bruxa, castrada, aquela que não tem.

Parte I: Justine

A primeira cena é a da limusine levando os noivos para a festa de casamento, a limusine é grande demais para fazer uma curva na estradinha de terra que leva à mansão, praticamente um palácio onde uma festa caríssima e organizadíssima os espera. Na dificuldade de ajuste entre carro e estrada temos o prenúncio das dificuldades de Justine, mas, mais que as dificuldades de “adaptação” de Justine, aponta para o desencaixe fundamental entre os sexos. Cada sexo tem uma equação diferente e a relação entre eles é de uma radical não-complementaridade. O sonho de amor não sobreviverá ao rito.

Logo ao chegar à mansão da irmã, Justine olha para o céu e pergunta que estrela vermelha seria a que vê. Seu cunhado John, estudioso dos astros e planetas, responde imediatamente, com a segurança de um cientista: “É incrível que você consegue vê-la: é a estrela Antares, a maior estrela da constelação de Escorpião.” O conhecimento do cunhado vai se mostrar completamente equivocado em contraposição à justeza que Justine vê e sabe. Ela simplesmente sabe (das) coisas. E logo que chega ao palacete, mesmo estando atrasadíssima, Justine vai fazer um agrado no cavalo Abraham. Um belo cavalo negro que também sente que algo está prestes a acontecer, evocando o erotismo errático da noiva, as noturnas cavalgadas das bruxas.

E há o contraste entre duas irmãs. Uma tem marido, filho, dinheiro. Uma tem. A que tem se veste de cinza. A outra se enrola nos fios cinza que a impedem de andar. Justine sentirá depois gosto de cinza ao comer o bolo de carne que ela gostava quando criança. O gosto amargo da intensa indiferença da mãe e insensibilidade do pai no dia de seu casamento. O vestido da irmã Claire é cinza e se transforma numa armadura da mulher postiça querendo seguir a formalidade de cada etapa do ritual. E prepara a festa de casamento da irmã, a que tem “crises”. A irmã Claire faz semblante de perfeição e mascara sua divisão, com aparência de que tudo tem. Justine não se sente à vontade em seu vestido de noiva. Enquanto o vestido cinza é uma armadura para Claire, o vestido branco é uma fantasia para Justine. E ela vai rasgar a fantasia definitivamente quando, levada por uma pulsão diabólica, vai transar no jardim com outro homem, um colega de trabalho que depois se oferece para ser seu marido e sócio. Ela declina tal convite… O noivo parte.

Parte II, Claire

Claire chama Justine para irem cavalgar pelos bosques da mansão. O tema de Tristão e Isolda insiste. Aqui temos reverberações de imagens e escritos medievais que falam de cavalgadas diabólicas das bruxas permeando a imaginação melancólica. No fundo do quadro de Cranach acima citado, à esquerda, há uma imagem de uma cavalgada noturna de bruxarias dentro de uma nuvem. No filme, a imagem impactante do erotismo da bruxa Justine é quando ela toma um banho de lua, nua.

Todo o burburinho da primeira parte do filme desaparece e agora a depressão e a lucidez de Justine ficam evidentes. Agora é um filme onde a casa se torna uma personagem. Claire toma conta da irmã mas fica muito irritada quando a irmã lhe diz a verdade, lhe tira o véu. No momento em que seu marido já se suicidou, ela já entendeu que o planeta vai se chocar com a Terra, ela ainda quer tomar uma taça de vinho e passar uns momentos agradáveis antes do final dos tempos. A irmã diz é uma ideia absurda.

“Há momentos que eu te odeio tanto, Justine” — é a frase repetida por Claire. Nos momentos finais, Justine faz com o sobrinho uma cabana mágica. Ela repete o gesto da figura alada de vermelho do primeiro plano do quadro de Cranach, a representação da Melancolia, descascando ou apontando o graveto para depois construir a cabana. Claire se junta aos dois e o planeta Melancolia, como anunciado, colide com a Terra.

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3 comentários para "As cores da melancolia feminina"

  1. FRANCISCO PUCCI disse:

    Linda interpretação. Erudita. Mas isso tudo está no filme ou, como em todo símbolo, é uma das várias interpretações possíveis?
    Os expectadores comuns apenas disseram (em maioria): ‘é uma droga’.
    Lembro-me dos tempos (Já sou antigo) do cinema “noir” ou da “nouvelle vague”. Para parecermos intelectuais, assistíamos e aplaudíamos (éramos estudantes, afinal), mas não entendíamos. A linguagem hermética é a ideal para a expressão artística?

  2. Paulo disse:

    Traz à memória o filme Razão e Sensibilidade, que propôs uma reflexão semelhante, embora sem tanta melancolia e catastrofismo ! Um bom filme é sempre bem vindo !

  3. Juliana Machado disse:

    Linda interpretação do filme, Luiza! Parabens. Fica latente a opsição entre as duas irmãs no que uma é certinha (e absolutamente neurótica) e a outra, cheia de “crises”, serena, contempla o fim. Aguardo novos textos seus com mais arte a análise. abraços,

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