Para celebrar a ignorada agricultura quilombola

No Vale do Ribeira, uma Feira de Troca de Sementes exibe enorme diversidade de cultivos e modos tradicionais de plantar. Mas a “lei do meio ambiente” criminaliza o conhecimento ancestral

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Por Julicristie M. Oliveira*

Entre os dias 17 e 18 de agosto de 2018, tivemos a 11ª Feira de Troca de Sementes & Mudas Tradicionais das Comunidades Quilombolas do Vale do Ribeira, que acontece todos os anos na cidade de Eldorado, Vale do Ribeira, São Paulo. Para muitos dos presentes, tratava-se do 11º. encontro; para mim, foi a primeira oportunidade de conhecê-los: mulheres e homens quilombolas, profissionais e estudantes, organizações sociais, comidas e bebidas tradicionais, sementes e mudas.

O primeiro dia do encontro, reservado para diversas falas, ocorreu em um salão paroquial localizado no centro de Eldorado, próximo a uma grande praça, relativamente arborizada, ocupada por grama, flores, cimento e bancos, com bares, restaurantes e pequenos comércios no entorno e uma igreja grande e amarela mais à frente, a Paróquia de Nossa Senhora da Guia. Pessoas iam e viam, e se acumulavam na calçada e na rampa que dava acesso ao salão. O espaço era amplo, com luminosidade relativa, ocupado por cadeiras de metal em filas e dispostas em forma de meia lua, voltadas para um centro onde havia uma mesa longa coberta por chitas floridas, adornada com cestarias e esteiras de palha, espigas e grãos de milho, mandiocas e estacas, feijões e abóboras. Ao lado esquerdo, logo na entrada do salão, havia uma mesa com profissionais do Instituto Socioambiental – ISA, responsáveis pela organização do evento, e que nos convidavam a assinar a lista de presença e receber um crachá que nos identificava. Materiais produzidos sobre os sistemas agrícolas tradicionais, vídeos e livros, estavam dispostos ao fim da mesa, e anunciavam em certa medida o tom do evento: uma mescla de conhecimentos ancestrais, mecanismos de registro, de reconhecimento desses patrimônios e sua salvaguarda.

Atrás de algumas largas pilastras, uma mesa longa, coberta por toalhas coloridas, oferecia a melhor das acolhidas: um café da manhã quilombola. Mandioca, batata-doce, inhame cozidos, pães caseiros (com biomassa de banana), cuscuz de arroz com amendoim, café adoçado com garapa ou não, e pote de mel. Diante dessa mesa farta, sem produtos de padaria ou industrializados, fomos todos convidados a nos conhecermos pela comida. Estabeleci uma relação de proximidade com o cuscuz de arroz com amendoim. Perguntei o que era a um amigo. Tirei a dúvida se era doce ou salgado. Perguntava como se quisesse conhecer melhor uma pessoa. Recebi dicas de comê-lo com café, pois é um cuscuz mais seco. Depois de uma aproximação lenta como a de quando estamos conhecendo alguém, estabeleci com o cuscuz uma relação de afeto. E ele me acompanhou em outros momentos durante esse primeiro dia, foi uma espécie de guia dos sabores.

Um pouco depois das 10h da manhã, as falas foram iniciadas. A primeira mesa foi composta por agricultores tradicionais, quilombolas ou não, de longe (Minas Gerais) e de perto. Dividiram suas experiências. Fiquei muito marcada pela fala da dona Elvira, do Quilombo São Pedro, que deixou claro que as trocas estabelecidas em todas as edições da feira possibilitaram um reavivamento das roças, a recuperação de sementes e mudas perdidas, a garantia de diversidades, uma maior segurança do sistema agrícola e a soberania alimentar das comunidades. Durante a tarde, as apresentações foram mais institucionais e voltadas para aspectos relacionados aos mecanismos de registro de patrimônios e sua salvaguarda.

Foto: Roberto Almeida/ISA

No outro dia pela manhã, em uma outra praça com coreto, barracas foram dispostas para que as trocas e a comercialização de alguns produtos fossem realizadas. Como moro em outra cidade, comprei alguns alimentos que poderiam ser transportados com facilidade: banana chips, farinha de mandioca, feijão rosinha, rapadura e taiada. Essa última é um doce em barra produzido com rapadura, farinha de mandioca e gengibre pilados. O feijão rosinha me rendeu uma boa percepção… quando realizava a compra junto a uma barraca, ouvi atentamente uma senhora que estava na dúvida se levava ou não o saquinho com feijão rosinha disponível para troca, pois como cultivava treze variedades de feijão, estava na dúvida se já o tinha ou não. Eu, na minha pequenez diante dessa imensidão, fiz algumas contas e cheguei à conclusão de que muito provavelmente eu nunca comi treze feijões diferentes na minha vida, pelo menos, ainda não.

Na feira, além de sementes e mudas, de mulheres e homens quilombolas, havia também apresentações culturais das comunidades que participavam do evento e ocuparam o palco montado em frente ao coreto. Durante o show de uma banda, a mesma dona Elvira do Quilombo São Pedro, escritora e cantadora de muito talento, foi convidada a se apresentar. Com um papel com a letra em uma mão, que também segurava um caderno preenchido com suas poesias, dona Elvira pôs-se a cantar. E cantou uma defesa de sua roça. Em um dos seus versos, falava da “lei do meio ambiente” que cria entraves, atrapalha o cultivo, criminaliza os modos tradicionais de plantar. Assim, ela nos indicou que outros mecanismos são necessários e regras mais sensíveis devem ser estipuladas.

De volta ao salão paroquial, a 11ª edição da feira foi fechada com um almoço tradicional quilombola, farto e delicioso. E haveria uma forma melhor de comemorar?

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* Julicristie M. Oliveira, professora da FCA/Unicamp, conheceu a feira a convite da Araribá Turismo & Cultura (www.arariba.com).

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5 comentários para "Para celebrar a ignorada agricultura quilombola"

  1. Jornalismo público? De qualidade? Sem hipocrisia? Recebi um email do ISA, queria entender o por quê.

  2. No Vale do Ribeira existe um dos maiores reservatórios de água potável do mundo, o PETAR – parque turísticos alto ribeira – que se sobrepôs às áreas das comunidades tradicionais tem investimento do BID, o ISA tem investimento da União Européia, já conhecem todo o território pois pra fazer o livro pagaram uma miséria para os quilombolas fazeram todo o mapeamento das comundiades e de suas principais riquezas naturais.
    Precisamos lançar um olhar crítico…

  3. Precisamos também lançar um olhar crítico às ONGs, com dinheiro de fora que se autopromovem e ficam com todo o dinheiro que poderia ser adminstrados pelas pessoas dos quilombos e revertido completamente para a luta quilombola.

  4. Paulo Boaventura Netto disse:

    Não ficou clara – foi apenas citada – essa influência desfavorável da “lei do meio ambiente”. Seria muito importante o esclarecimento desse ponto.

  5. muito bom o texto, ótima iniciativa. è necessário dar visibilidade às populações tradicionais, às comunidade quilombolas.

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