Caminhoneiros: Governo ensaia recuo. Esquerda permance ausente

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Recurso às Forças Armadas parece fracassar. Balança uma das políticas essenciais de Temer. Porém, enorme potência rebelde da mobilização segue desperdiçada

Por Antonio Martins

I.

Tudo é móvel e pode se desfazer rapidamente nos momentos de crise aguda, mas a tendência principal, na manhã deste domingo (27/5) é um novo recuo do governo Temer, diante da paralisação nacional dos caminhoneiros. A forma em que ele poderá se dar foi ensaiada ontem à noite, em São Paulo. Sob mediação da OAB o governador Márcio França reuniu-se com lideranças da categoria em luta. Do encontro, saiu um pré-acordo, a ser levado aos bloqueios nas rodovias. Ele implica novas concessões por parte do Estado. O congelamento do preço dos combustíveis seria ampliado para 90 dias. O Procon fiscalizaria, nos postos, sua efetivação. Haveria importante redução nas tarifas dos pedágios, com o fim da cobrança pelos “eixos suspensos” (que significa ausência de carga) dos caminhões. Seriam anuladas todas as multas aplicadas. Os caminhoneiros autônomos passariam a ter representação na Agência de Transportes estadual.

Ficou claro, no encontro, que não se trata de acordo — mas, por enquanto, de sondagem. As primeiras reações, entre os caminhoneiros, foram contraditórias. Ainda assim, o ministro da Secretaria de Governo, Carlos Marun, foi chamado às pressas, para participar de sua celebração. Declarou não apenas que concorda com os termos negociados mas também que proporá, a Michel Temer, sua adoção pelo governo federal. Afirmou que “os caminhoneiros já são vitoriosos”. Um novo encontro, no Palácio dos Bandeirantes, está marcado para as 15h de hoje.

II.

O pré-acordo representa uma nova reviravolta, em relação à postura que vinha sendo adotada pelo Palácio do Planalto. Ainda na sexta-feira à noite, o presidente Michel Temer anunciara a convocação das Forças Armadas para reprimir os caminhoneiros. No sábado à tarde, o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann anunciou que começariam as prisões. Já o ministro interino da Defesa, ameaçara “uma ação rápida, integrada e de forma enérgica como deve ser o emprego de forças”.

Por motivos que ainda não estão claros, nenhuma destas bravatas se concretizou. No máximo, veículos do Exército escoltaram, com alarido, comboios da caminhões-tanque que abasteceram dois aeroportos de grande movimento — Brasília e Recife — que começavam a cancelar voos em massa. A ação foi parcial. Na manhã de domingo, continua fechados 14 aeroportos. Todas as demais consequências da paralisação mantiveram-se ou se agravaram. Nas principais cidades do país, não há mais combustível nos postos. Os Ceasas recebem apenas um número reduzidíssimo de caminhões. Faltam gêneros nos supermercados. Fábricas (inclusive de automóveis) estão paradas, por falta de componentes.

Os efeitos do movimento, e as hesitações e recuos a que ele tem levado o governo, rompem um paradigma de imobilidade. Nos dois últimos anos, parecia que a agenda de retrocessos imposta após o golpe de 2016 era irrefreável. Desafiá-la, após sucessivas derrotas, era algo visto como fora do campo das possibilidades reais. Os caminhoneiros mostram que este cenário opressor, e aparentemete imovível, pode ser quebrado.

III.

Porém, trata-se de greve ou locaute? É prudente apoiar um movimento em que parte dos integrantes ostenta faixas em favor da “intervenção militar”? Aturdida por tais questões, a esquerda institucional paralisa-se e se distancia.

Sim, parece haver apoio e envolvimento claro das grandes transportadoras à maioria dos caminhoneiros autônomos. Nem por isso, suas reivindicações são menos justas ou potentes. Uma nota técnica do Dieese publicada sábado mostrou que, sob a direção de Pedro Parente, a Petrobras impôs, só nos últimos trinta dias dezesseis aumentos nos preços do diesel e gasolina. Nas refinarias, a elevação foi de 18% a 20%. Mas nos postos ela atingiu 38,4% para o diesel e 40% para a gasolina.  Como esperar que os caminhoneiros se mantivessem calados?

Esta política insana é, além disso, parte de um dos objetivos centrais do golpe: desmontar a Petrobras (as refinarias estão em processo de venda ou desativação); submetê-la aos interesses dos investidores internacionais (por isso, o preço dos combustíveis é atrelado às cotações do petróleo; privatizá-la se possível, e entregar a riqueza do Pré-Sal para petroleiras estrangeiras. As medidas provocam enorme sofrimento entre a parcela mais empobrecida da população. Só entre junho e dezembro de 2017, o gás de cozinha subiu 68%, levando, no extremo, 1,2 milhões de famílias a regredir ao uso de lenha.

O foco crucial da mobilização que sacode o país e se tornou assunto obrigatório de todas as rodas de conversa é, portanto, revogar uma política odiada pela população e contestada pela esquerda. Esta, porém, parece a cada dia mais paralisada.

IV.

Duas reportagens recentes, na mídia comercial, retrataram o quotidiano dos bloqueios nas rodovias. As repórteres Josette Goulart, em Piauí, e Carolina Linhares, Isabel Fleck e Joana Cunha da Folha, fizeram relatos semelhantes de seus encontros com os caminhoneiros. Juntos, estes sentem-se empoderados ao compartilhar histórias sobre jornadas de trabalho desumanas, solidão, ganhos reduzidos. Organizam churrascos coletivos (às vezes com carne doada por donos de postos de combustível). Não se sentem representados pelas entidades que supostamente os “lideram”. Recebem frequentes manifestações de solidariedade da população. Fazem críticas ácidas a Temer e seu governo. Muitos apoiam abertamente Bolsonaro e ostentam faixas com pedidos de “intervenção militar”.

Diante deste fato, há quem julgue que o ambiente turvou-se de vez, com o país dividido entre o neoliberalismo extremo do governo e o proto-fascismo que avança entre a multidão. Será assim? Como, então, explicar fenômenos de sentido totalmente diverso, como a liderança persistente de Lula nas pesquisas de intenção de voto?

Talvez valha a pena especular sobre uma hipótese distinta. No Brasil, como em tantos outros países, o antigo centro político está se dissolvendo. Repare, por exemplo, no novo governo italiano, formado por dois partidos anti-europeus, ou no pântano em que patinam, no Brasil, as candidaturas presidenciais de Alckmin, Meirelles e Rodrigo Maia. A impopularidade do governo e suas políticas persiste. Ela já não atinge apenas o próprio Temer, mas também o Congresso (5% de aprovação, segundo o Datafolha). Abriu-se uma avenida para as alternativas que, há pouco, eram impensáveis.

A esquerda clássica, contudo, parece cada vez mais limitada às disputas institucionais. Deixou de atuar sobre temas centrais para a vida das maiorias: por exemplo, os efeitos da contra-reforma trabalhista, o desmonte dos serviços públicos, o inferno em que a presença militar condena as periferias, no Rio de Janeiro.

“Intervenção militar” pode ter se convertido, neste contexto, não em sua expressão literal, mas na expressão irada de um desejo de mudança; de repulsa a uma casta política que não se envergonha de eliminar direito da maioria; da esperança por dias melhores, que parecem tão inalcancáveis sob as regras do jogo atuais.

V.

Esta situação é, potencialmente perigosa?  Sem dúvida. Mas cada novo fato político parece sugerir que é preciso romper a paralisia atual — sob pena de tudo tornar-se mais difícil adiante. No final da manhã de domingo, havia duas perspectivas imediatas possíveis. A primeira seria uma vitória dos caminhoneiros, apadrinhada pelo governador paulista, que certamente saberia colher os dividendos políticos deste gesto. A segunda, caso a tendência se reverta, um recrudescimento da repressão por parte do governo, que procuraria neste caso posar de “garantidor da ordem” e atrair a parcela crescente da população que se sente insegura.

Há um vasto território para apoiar os caminhoneiros, sem juntar-se aos que defendem a “intervenção militar”? No plano da formulação política, é possível, por exemplo radicalizar a proposta de congelamento dos preços — estendendo-a à gasolina e ao gás de cozinha, e sugerindo a revogação dos aumentos já autorizados desde que adotada a política de atrelamento às cotações internacionais. Uma proposta de sentido altamente simbólico seria a demissão de Pedro Parente, o presidente da Petrobras que age para destruir a empresa. Diante do temor espalhado pelo governo e pela mídia, para os quais “a população pagará” as concessões fiscais feitas ao movimento, basta lembrar o subsídio fiscal de 1 trihão de dólares em vinte anos oferecido às petroleiras internacionais — e sugerir que também ele seja revisto.

Uma pauta alternativa poderia incluir medidas de médio e longo prazo. Entre elas, a anulação da lei que permite a entrega do Pré-Sal a petroleiras estrangeiras (em defesa de uma política energética autônoma) e um Plano Nacional Ferroviário — agora que estão ainda mais evidentes os efeitos da dependência rodoviaria.

Mas política precisa ser, além de projeto, prática quotidiana. Por isso talvez valesse a pena, em resposta à escassez de combustíveis e à paralisação da frota de automóveis, tramar a tomada das ruas por gente interessada em debater, reunir-se, divertir-se.

Há um vasto leque de ações possíveis, para quem não estiver acomodado à paralisia.

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