Comuns: a Holanda constrói com cuidado

171013-Holanda2B

.

No centro do país, uma cooperativa assume ações de assistência antes executadas pelo Estado e enfrenta o desafio de manter o caráter público dos serviços, introduzindo a participação direta dos usuários

Por Georgia Nicolau

MAIS:

Texto em três partes: leia a primeira abaixo

A dura — e indispensável — construção dos Comuns

Claramente anticapitalista, ideia de proteger das lógicas de mercado cada vez mais aspectos da vida precisa tornar-se popular. Como fazê-lo?

Em junho último participei, representando o Instituto Procomum e o Lab Santista, da conferência bienal da Associação Internacional para os Estudos dos Comuns, que aconteceu na cidade de Utrecht, região central da Holanda.

Entre a programação da conferência, um dos dias foi reservado para uma visita a campo a várias organizações que praticam o Comum pelo país inteiro – em cerca de três horas é possível ir de uma ponta à outra da Holanda. Eram muitas as opções, nove excursões foram oferecidas, com uma diversidade de locais e temas: visitas a sistemas de gestão cooperativa e coletiva de água, de terras, de comida, de moradia, de energia, de patrimônio cultural entre outros. Optei pelo tour que tinha o nome de “Cuidar em comum: iniciativas de cidadãos para cuidados, habitação e alimentos nos Países Baixos centrais”.

A palavra cuidado me atraiu de cara, já que tem sido uma agenda bastante importante para a construção do Instituto Procomum, em várias camadas: como agenda de trabalho, pensando o âmbito do cuidado na concepção de outros mundos possíveis; como agenda interna, pensando a organização a partir do cuidado consigo e com xs outrxs; e individual de cada um de nós. Nunca tinha ouvido falar em uma cooperativa de cuidado e estava bastante curiosa para entender seu funcionamento.

Além da cooperativa de vizinhança, que tem o nome de Apeldoorn-Zuid (Apeldoorn Sul, que é a região onde eles atuam), fomos ainda visitar o projeto Aardehuizen (Earth House) na cidade de Olst, que é o projeto habitacional mais sustentável na Holanda. Composto por 23 casas e um centro comunitário, tudo foi construído pela própria comunidade, usando majoritariamente materiais de sucata, como vigas de madeira recuperadas, fardos de palha e pneus de carro.

O nome do projeto advém do fato de as casas possuírem uma cúpula em formato da terra. Por fim, visitamos a propriedade ecológica chamada Roggebotstaete, criada a partir de um terreno privado que foi doado a uma fundação, estabelecida em 2012, na cidade de Dronten, na região de Flevolândia, que apenas 60 anos atrás era o leito do mar. Roggebotstaete tornou-se uma área de produção natural e sustentável de alimentos, onde o respeito pela natureza e a comunidade são valores básicos. Abrange 52 hectares de florestas, pastagens e reservatórios de água além de animais como vacas, ovelhas e porcos.

nossa casa

Neste relato vou me concentrar no funcionamento da cooperativa, carinhosamente chamada de Zuid Doet Samen (O Sul Fazendo Juntos -na foto acima) porque creio que seu modelo traz inspirações interessantes tanto para pensarmos modelos organizacionais quanto para outros olhares sobre saúde, bem estar e responsabilidade partilhada pelo cuidado, principalmente em bairros e comunidades. Com nossxs vizinhxs. Segundo o Dicionário de Latim-Português Porto, a palavra vizinho tem origem no latim ‘vicinus’, que significa residente próximo, isto é, o habitante que é da mesma rua ou da mesma aldeia, ‘vicus’, em latim.

Apeldoorn é uma cidade de cerca de 150 mil habitantes na região central da Holanda. A cooperativa se concentra na região sul da cidade, que tem cerca de 35 mil habitantes, segundo um de seus co-fundadores, o ex-vereador pelo PvdA, partido Social-Democrata holandês, Ton Kunneman. É a região mais pobre da cidade, com grande concentração de aposentadas, aposentados e desempregados.

Chegamos na sede da cooperativa por volta das 9 horas da manhã. A sede é chamada por eles de “nossa casa”. Encontrei significados de cuidado já na nossa recepção. Chá, café, água, sorrisos e bolachinhas holandesas em cada uma das mesas e um formato pensado de modo que pudéssemos conversar sem pressa com funcionários da cooperativa, voluntários e a comunidade.

A existência da sede permite que eles façam refeições em conjunto, oficinas, atividades dadas pelos e para os membros, reuniões etc. Há ainda o site, constantemente atualizado, uma coluna mensal no jornal local e um programa na rádio local, também mensal. Essa visibilidade tem se traduzido em mais voluntários para a cooperativa. Um exemplo é Bart, com quem conversei. Policial militar aposentado, Bart era um dos mais entusiasmados. Contou que soube da cooperativa depois que sua esposa, deficiente física, e de quem ele cuidou por 40 anos, teve um derrame e foi parar em uma casa de assistência para idosos. “Nos dois meses em que ela ficou lá, ela chorou todos os dias. Até que a tirei de lá e começamos a frequentar a cooperativa. Ela é outra pessoa, assim como eu também. Revivemos os dois”, contou ele, que — com seu porte grande e seus quase dois metros de altura — é hoje uma espécie de faz-tudo na cooperativa.

Quando uma política pública de cima para baixo faz surgir alternativas

Na Holanda, desde 2015, as responsabilidades com saúde pública e bem estar foram transferidas do governo central para os municípios. A justificativa para essa mudança na lei de suporte social foi a de “ fortalecer a participação, a auto-resiliência e o controle dos cidadãos”. Com a mudança, o governo esperava que os serviços de saúde fossem menos utilizados e com mais eficácia, diminuindo custos. No entanto, a mudança veio de cima para baixo, sem diálogo, sem construção de alternativas.

Como se daria essa transição, se a população  já estava acostumada a ter aqueles serviços?  Como promover a mudança para que cidadãos participem e tomem conta do bem estar deles e de sua vizinhança? Essas foram algumas das perguntas que incentivaram o nascimento da cooperativa, criada em dezembro de 2013, por dois moradores de Apeldoorn Sul: Kunnemen e Mechelien Burghour, enfermeira, ela também com passagem, no passado, pela política local.

Uma das coisas que me chamou atenção é que eles se autodenominam uma organização experimental e em eterno aprendizado. “Quando começamos, nos disseram que éramos loucos e que não daria certo”, contou Ton. “O governo não está acostumado com cidadãos que fazem e nem os cidadãos a cuidarem de si mesmos”. ”Há uma geração inteira — disse Ton, que tem seus mais de 70 anos — que se acostumou com o governo cuidando de tudo, e isso está começando a mudar.”

Para o bem e para o mal. De um lado, vê-se pululando iniciativas cidadãs, voltadas para o compartilhamento de serviços e gestão de recursos autogestionadas. Por outro, há o receio de que isso possa se transformar em mais um argumento para o avanço neoliberal que já ocorre há alguns anos no país.

O texto de apresentação da cooperativa esclarece a posição de seus membros sobre isso: “não se trata de transferir tarefas e responsabilidades, mas de transformar nosso jeito de pensar sobre saúde e bem estar e transformar nossa maneira de lidar com a realidade”.

A cooperativa hoje possui 50 funcionários e 700 membros que pagam um valor simbólico de dez euros ao ano (cerca de 40 reais) e mais colaboração com trabalho voluntário, já que o princípio da cooperativa não é fornecer serviços, mas também educar a si mesmo e aos outros, pensando o cuidado e o bem estar como uma responsabilidade compartilhada por todos.

Pilares da cooperativa são os chamados assistentes de vizinhança, todos profissionais contratados.  Eles tinham que preencher os seguintes pré-requisitos: pessoas que estavam desempregadas, moradores do bairro, pessoas que gostassem de pessoas e que possuíssem experiência de vida. Eles circulam pelas casas (cada um tem uma região específica), sendo o ponto de contato de quem necessita atenção extra, para quem quer tirar alguma dúvida ou apenas conversar e inclusive ajudam no diálogo com a prefeitura local. Eles também são mediadores de participação, conectam pessoas, auxiliam nas iniciativas organizadas pelos cidadãos e estimulam a participação das pessoas com o bairro e os vizinhos. Os assistentes de vizinho passam por um treinamento contínuo com a psicóloga Joke de Vries, que está no projeto desde seu início e faz tanto trabalho remunerado quanto voluntário na cooperativa. Veja abaixo um quadro onde os próprios assistentes contam seu modo de trabalho.

O orçamento anual da cooperativa é de 400 mil euros por ano (cerca de 1,5 milhões de reais) que vem, em sua quase totalidade, de subvenção pública. “Nosso problema é que somos muito baratos”, brincou Ton. Mas não é o ideal, na opinião dele, que está buscando alternativas ao modelo de financiamento. Uma das razões, além da instabilidade, é o fato de que ao receber dinheiro público, muitos recursos são drenados com contabilidade e burocracia.

Grande parte dos assistidos pela cooperativa são idosos solteiros, viúvos, casados, sem filhos ou cujos filhos se mudaram para as cidades maiores, como Amsterdam. Hoje em dia há também programação para as crianças depois da escola, utilizando-se do tempo e da sabedoria dos mais velhos para, por exemplo, aulas complementares e de reforço à escola.

O desenvolvimento da cooperativa desdobrou-se também em um trabalho de educação que coordena, por exemplo, estágios com estudantes de cursos técnicos de saúde com pessoas com deficiência.

Porque o trabalho é tão pioneiro e experimental, a equipe resolveu transformá-lo também em objeto de estudo e pesquisa dividido em duas partes: um estudo de caso e um estudo de intervenção. O último vai pesquisar o efeito da metodologia utilizada por eles e em seu conceito de saúde e autonomia. E o primeiro foca no trabalho dos assistentes de vizinho e no significado deles para o desenvolvimento do bem estar e do bairro como um todo.

Na manhã que passamos juntos, muitas vezes falou-se sobre como não se trata de substituir a medicina tradicional, mas de dar um sentido mais subjetivo e humano ao que significa bem estar e saúde. Com a consciência de que se trata de um projeto desenvolvido em um contexto específico, confesso que saí de lá com muitas reflexões sobre o papel da política pública, sobre o papel dos cidadãos e como desenvolver essas interfaces. Mas, deixando a racionalidade de lado, saí de lá energizada e emocionada com a capacidade de empatia e auto-organização que nós humanas e humanos temos.

 

Leia Também: