Para que Sakamoto compreenda a antropofagia

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Ao contrário do que escreve o jornalista, ódio a Marisa Letícia nada tem a ver com filosofia antropofágica. Nesta, admira-se o outro e a diversidade — e se abomina, portanto, o fascismo à brasileira

Por Camila Mota e Cafira Zoé | Imagem: Crânio

No dia 25 de janeiro foi publicado pelo Sakamoto — jornalista e cientista político ligado a importantes questões sociais, dentre elas a urgência em expor e desfazer as tramas perversas do trabalho escravo –, um artigo que correlaciona o ódio destilado nas redes sociais contra Marisa Letícia, e outros tantos escolhidos como o bode da vez, ao que Sakamoto chamou de “o Brasil antropofágico que pede passagem”.

É grave que estejamos vivendo uma era do enxofre, que força passagem e não pede licença quando se expõe cada vez mais segura, cada vez mais espaçosa, na trama tecida a muitos golpes na construção de um fascismo à brasileira. O ódio a tudo o que não sou eu — ou ao que talvez seja e não quero ser – tem de fato cortado cabeças na fina faca da intolerância, o que nos aproxima da esfinge de Tebas, na Grécia, que estrangulava todos aqueles que não conseguissem decifrar seus enigmas.

Até que nem tanto esotérico assim, no entanto, é o ódio de classes e o jogo perverso que incita ao eterno retorno um revanchismo binário do eu ou você nas políticas do poder, afinal, como disse Marine Le Pen em seus festejos trumpistas, “não é o fim do mundo, é o início de um novo mundo”, ou o clássico cafona nas narrativas de cinema: meu bem, só há espaço pra um de nós. A esfinge fascista já não se esconde tanto, a saída do armário do ódio permitido — e alimentado — num ciclo complexo de regurgitação acontece, e nos devora, e nisso Sakamoto tem razão. O ovo da serpente já não guarda tanto mistério, é e se cria. Acontece que o ódio a Marisa Letícia nada tem a ver com a antropofagia. O que pede passagem na ágora da nossa res-pública talvez seja uma espécie de subjetividade abutricida marcada por uma grave dificuldade de deslocamento e desterritorialização — exercícios e experiências que nos fazem outros, ainda sendo nós — distantes, próximos, diferentes: a alteridade, ou como coloca Sakamoto, empatia.

Crise das políticas de representação, da democracia, da economia, do afeto, mas também uma grave crise estética, de conceitos, de estruturas nos atravessa — e nesse guarda-chuva é preciso estar atentos, sempre atentos, ao risco de engrossarmos o caldo da dualidade vazia, da informação precária, que dão de comer aos imaginários racistas, xenófobos, misóginos, fascistas. É fundamental que as narrativas criadas hoje façam um pouco mais que associações rápidas para publicar textos de susto. É mais urgente agora buscar narrativas que abram, possibilidades que quebrem os textos informativos fechados.

Um olhar mais atento para o manifesto antropófago e nos deparamos com a força de uma filosofia capaz de ser potência para o devir-outro, devir-índio, que nos guia pra fora desse medo de viver junto, sendo tantos e tão diferentes.

Nesses tempos narrados pelo próprio autor do texto, não basta um pedido de desculpa acusando a literalidade da interpretação, oposta ao sentido original, pois inevitavelmente, ele está difundindo para milhares de leitores um conceito impreciso sobre antropofagia — que não faz distinção entre antropofagia e canibalismo. No canibalismo come-se sem relação com a comida. Mata-se a fome e pronto.

Na antropofagia o ato de comer nunca é dissociado de sentido. As tribos antropófagas devoravam humanos principalmente em duas situações: os parentes mortos, para que não fossem devorados pela terra fria, sendo reservado aos entes queridos o calor da deglutição; e os inimigos sacros, para que fosse absorvida sua força. Esse ato tem como finalidade a transformação permanente do Tabu em Totem.

Um banquete antropófago é justamente um rito de adoração da adversidade, que abomina práticas de neutralização ou extinção de outras culturas, pensamentos, estéticas e visões de mundo.

Com o fascismo crescente, hoje, na direita e na esquerda — no desejo de aniquilação das diferenças –, é justamente a perspectiva antropófaga que deveria entrar em cena como filosofia política, como experiência de contracenação, como prática de remoção dos antolhos para ver o antagonista com olhos livres.

Outro equívoco de Sakamoto é reduzir o conceito de antropofagia ao movimento modernista. Muitos autores deram continuidade às pesquisas de Oswald de Andrade trazendo-as à luz do tempo contemporâneo e revelando a urgente necessidade do retorno ao pensamento em estado selvagem, à percepção da cosmopolítica indígena, que hoje nos mostram como totemizar a predação e o trauma social do capitalismo e do antropocentrismo que atravessam continentes e séculos carregando a mitologia do Progresso a qualquer custo.

O matriarcado de Pindorama, presente no manifesto antropófago, abre caminhos como a potência da diferença em contracenação com o messianismo, patriarcal. A crise da filosofia messiânica (de Oswald) é o presságio ágil, movimento, que se conecta na contramão do tempo ao pós-estruturalismo e à força de imanência das coisas encarnadas. Expõe o abcesso fechado da ideia de representação, revela a crise do platonismo e a falência das estruturas centradas na insustentável leveza da verdade, atada à dinâmica simplista de bem ou mal. Antropofagia é deslocamento. Havemos de saber mais dela, é nossa contribuição milionária aos saberes do mundo.

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5 comentários para "Para que Sakamoto compreenda a antropofagia"

  1. Carlos Bottesi disse:

    Você realmente leu o artigo do Sakamoto ? Até o final ?

  2. Alexandre Souza disse:

    Ótimo texto. No entanto, parece claro que Sakamoto manifesta seu lamento ao notar que a Antropofagia comum entre os brasileiros é aquela literal, oposta ao sentido do movimento antropofágico. Vejamos:
    “Por enquanto, porém, vamos transformando uma interpretação literal do Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, em profecia cumprida. (…)
    (Em tempo: peço desculpas pela ofensa modernista de usar o sentido literal – que é oposto à proposta original. Mas caiu como uma luva. Creio que Oswald não se importaria.)”

  3. Flor de Liz disse:

    Muito interessante, se não fosse tão chato de ler, leria até o fim.

  4. Luiz Moraes disse:

    Parabéns Camila e Cafira pelo tecnicismo da exposição, interessante como texto para não intelectuais, sem profundidade como eu. De certo modo venho observando, e não me ‘conformando’ com a volúpia do Sakamoto em se ‘apoderar’ de temas que de longe, o bom escritor/jornalista que é, deveria se limitar a modestamente redigir o mínimo exigido pela demanda do momento. Se observarmos bem, e pela extensão da exposição que se aventura em fazer em temas os mais diversos, mistura conceitos/tudo bem misturadinho e se dá ao direito de concluir pelo óbvio na maior cara de pau. Tenho sido crítico desse comportamento jornalístico [se puder assim me expor/explanar] e, aqui peço desculpas por deixar em segundo plano o rico conteúdo sobre antropofagia e canibalismo. E peço permissão para reutilizar sua frase [a meu ver fundamental] que em muito valorizaria o jornalismo & jornalistas nesse momento que vivemos; sic…É fundamental que as narrativas criadas hoje façam um pouco mais que associações rápidas para publicar textos de susto. É mais urgente agora buscar narrativas que abram, possibilidades que quebrem os textos informativos fechados.

  5. Emanuel disse:

    muito bem fundamentado o texto , mostar claramente como fazer aquilo que jesus prega amar o inimigo e pedir a ele mais uma tapa ,pois deste pónto de vista o tapa tambem foratalece, a alem disso mostra como fazer para diariamente um exercicio diario muito importante a aceitação do outro ,pois somente deste modo podemos barrar o facismo a brasileira.

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