Teatro e dança para questionar os "produtivos"

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Foto: Raphael Poesia

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Encenada na periferia de SP, após dois anos de pesquisa, peça vê na loucura uma das formas de rebeldia contra o controle e sujeição dos corpos, em nome de certa concepção de trabalho

“Sociedade dos Improdutivos”, da Companha Sansacroma

Até 10 de dezembro

Quinta à sábado 20h

Casa de Cultura M´Boi Mirim — Av. Inácio Dias da Silva, s/n, Piraporinha, São Paulo (mapa) (11) 5514-3408

Entrada grátis (retire ingressos na bilheteria meia hora antes do espetáculo)

Apresentado agora na Casa de Cultura M’Boi Mirim, depois de circular por outros espaços públicos de São Paulo, o espetáculo Sociedade dos Improdutivos, da Cia. Sansacroma tem direção de Gal Martins e é o resultado de dois anos de pesquisa teórica e de campo sobre a loucura.

O questionamento central do espetáculo contrapõe o corpo que é socialmente invalidado ao corpo que é socialmente produtivo. O primeiro é marginal, portador de algum tipo de loucura. O segundo é medicado, incluído e sujeitado ao modo de vida capitalístico – corpo explorado até o esgotamento das suas capacidades produtivas.

Trata-se da invalidez da reprodução. Força invisível chamada de loucura, transcender coletivo. A não-adequação social produtiva. É solidão. É a história, um itinerário da loucura em fusão para um embate contra o capital. O controle ocidental contrapondo a corporeidade do imaginário africano. São vozes potentes, negras, de territórios e seus povoamentos. Um cotidiano dos que estão à margem e dos que não estão.  São vozes da “Sociedade dos Improdutivos”.

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A dança contemporânea, ou o gesto que contaminou de humanidade a dança clássica, vem desde a Sagração da Primavera, de música encomendada ao jovem Igor Stravinsky para a coreografia ousada do histórico bailarino Nijinski no início do século passado. Quando seus pulos, seus movimentos e sua dança abriram os olhos da Europa. Fazer música para servir à dança era algo novo, ousado. Ai nasce o que conhecemos basicamente como dança contemporânea.

E essa história passa pela criação da grande escola alemã TanzTheater, que misturou todas as danças de ritmo, como o jazz, e danças populares europeias à dança clássica. Inseriu o gesto, a humanidade à dança. Essa escola tem como sua maior expoente nossa conhecida Pina Bausch.

A dança contemporânea no Brasil fala de literatura, fala de artes plásticas, fala de conflitos humanos, as vezes até de parangolés, as vezes, enfim, cria a palavra dançada para exprimir sentimentos pelos corpos, pelos movimentos. E aos poucos ela foi trazendo a cultura popular, mas ainda com uma característica elitista em muitos sentidos.

E a Cia, Sansacroma, liderada pela diretora e bailarina Gal Martins, é um marco na dança feita na metrópole, pois cria sua poética a partir da periferia, à partir dos negros, de depoimentos, de dores, de memória, de história cotidiana e de profunda proximidade com o público. A Cia é um grande sucesso não apenas na periferia, pois tem sua técnica e poética muito bem lapidada, e melhor, com opções muito claras.

Então o diálogo com a metrópole surge. A fronteira da dança contemporânea, essa que costuma ficar distante de nós, ela em parte se quebra. É sem dúvida merecedora de destaque essa companhia de jovem e destemidos bailarinos criadores.

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A pesquisa

A pesquisa teórica da companhia foi feita através de um consistente estudo sobre a história da loucura no ocidente. De Hieronymus Bosch, Pieter Bruegel, Erasmo de Roterdã, passando pela Nau dos Insensatos, de Sebastian Brant, até o conceito de Biopoder de Michel Foucault, pelo pensamento junguiano que inspira o trabalho da psiquiatra Nise da Silveira e pelos paradigmas que norteiam a Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial no Brasil.

A pesquisa de campo foi realizada inicialmente através de 12 intervenções artísticas junto aos usuários do Caps (Centro de Atenção Psicossocial) Jardim Lídia, que fica no Capão Redondo. E se estendeu por meio de um vínculo entre a companhia, os profissionais de saúde e os usuários deste Caps, direcionado a outras atividades artísticas na Fábrica de Cultura Capão Redondo.

Essencialmente implicada com as questões políticas e minoritárias, a companhia observou a maioria de corpos negros e periféricos presentes tanto nos manicômios do passado, quanto nas atuais unidades dos Caps.

Não por acaso, no momento em que a Sansacroma decide imprimir a força de sua negritude e ultrapassar a concepção dominante ocidental sobre a loucura, o encontro com o continente africano acontece pela narrativa da pesquisadora Denise Dias Barros e sua publicação “Itinerários da Loucura em Territórios Dogon” (Casa das Áfricas, 2004). Nesta região do Mali, a vida de cada um se dá na continuidade ancestral e se produz na malha social, constituindo redes de convívio na intersecção entre o mundo invisível e visível.

O recorte coreográfico da etnomedicina Dogon desconstrói o olhar eurocêntrico da loucura e redimensiona o espetáculo. Um novo panorama se abre aos saberes ancestrais. Tradições que interferem diretamente nos procedimentos terapêuticos, criando uma tessitura complexa, onde a figura dos adivinhos, ou marabus, são elementos principais no processo de cura, na reapropriação do si, da saúde, da autonomia e da liberdade.

Do encontro com estes pensamentos e experiências, Gal Martins expõe um dos argumentos que compõem o espetáculo:

“É conveniente manter a sombra oculta e invisível aos olhos de uma sociedade sujeitada a valores de consumo, que legitima enunciados científicos em torno de uma idealização de saúde. Essa perspectiva ocidental, forjada histórica e linguisticamente, extrai a singularidade expressiva e a potência de produção do ‘louco’. O inscreve na vulnerabilidade, no abandono, na miséria e na subjetividade-lixo, que impõem sua dependência aos tratamentos de contenção, ao consumo de medicamentos, substituindo o confinamento do passado, pelos controles farmacológicos e institucionais do presente”.

Deste modo, a poética do espetáculo pretende ultrapassar a mera denúncia ao capitalismo para fomentar empatias marginais e produzir percepções que levam o espectador a vivenciar processos que são humanos, mas que o sistema segregador institui como desvio, sintoma e doença indesejada. Nesta poética, a loucura das pessoas se afirma como potência singular que cria possíveis comuns, as situa num mundo e legitima uma vida.161028-ciasansacroma3

Estrutura cênica

O espetáculo tem uma estrutura cênica alternativa e sensorial. A música ao vivo e a ocupação numa instalação coreográfica deslocam o público para uma lógica dos sentidos e o retira da lógica do consumo que organiza a vida contemporânea. As sensações e reações motoras dos que assistem, vão compor a dramaturgia do espetáculo.

As estações coreográficas do espetáculo delineiam e revelam o quanto pode ser poderoso o ato de narrar e expressar um sofrimento. Narrativa gestual que se torna um ato de resistência política, afecção sensível e transformação de realidade social.

Sobre a Cia. Sansacroma – Criada em 2002 pela atriz, dançarina e coreógrafa Gal Martins, a Cia. Sansacroma tem se dedicado a desenvolver trabalhos baseados no hibridismo característico às criações coreográficas na contemporaneidade. Sua produção artística focaliza temas pertinentes à sociedade atual, no modo em que chegam e afetam a todos diretamente, seja no cotidiano das ruas, nas relações sociais e interpessoais, na mídia ou na própria arte. A Dança da Indignação, conceito criado pela artista, norteia a pesquisa de linguagem estética da companhia, que pretende reverberar no ato dançante as indignações coletivas, numa abordagem política-poética que aponta para as intersecções entre arte e vida. Tendo feito uma escolha singular ao atuar diretamente na periferia sul de São Paulo, este território influencia diretamente o seu processo artístico. O ponto de partida das criações são as poéticas do corpo negro, que circulam na população dessa região, a qual a companhia chama de indigenordestinafricana.

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