A urgência das hortas urbanas

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Voluntária trabalha na Horta das Corujas, na Vila Beatriz, São Paulo

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Ao cultivar comida em espaços antes “mortos”, hortelões congregam pessoas, geram identidade comum e reverenciam alimento como fonte de saúde e soberania

Por Andre Ruoppolo Biazoti

Viver em São Paulo não é para os fracos. Ainda mais quando se pretende transformar a cidade em algo próximo do habitável, do justo, do humano. A cidade acumula urgências, que gritam em bueiros entupidos, bocas famintas e cantos abandonados. Estreio aqui para falar de uma urgência que vivo no peito e na rua: a necessidade de nos conectarmos com nosso alimento.

Quando falo em alimento, quero retomar o caráter social e sagrado que isso implica. Alimentos eram ofertado aos deuses. Sabíamos de quem eram os melhores feijões da região. Olhávamos no olho do agricultor e conversávamos sobre o clima, as receitas e as miudezas da vida. Nos reuníamos na mesa, agradecíamos, trocávamos afetos e aprendíamos a arte da conversação, responsável pela formação da nossa civilização. Hoje não temos nada, talvez um “não” ao cartão promocional do mercado, talvez uns glutamatos monossódicos, uma nova série do Netflix ótima para assistir durante o jantar.

Muitos de nós quiseram voltar ao aspecto comunitário da produção de alimentos e, junto com a presidenta, saudar a mandioca e o milho. E não houve lugar melhor para isso do que ir para a rua, para a praça, para as instituições públicas. As hortas urbanas de São Paulo, muitas surgidas da rede dos Hortelões Urbanos, tornaram-se espaços de resistência nessa urbe caótica e promoveram um alívio a muitos angustiados, ávidos por colocar as mãos na terra e embarcar em uma aventura promissora de produzir o próprio alimento.

Pessoas comuns, como você que está lendo esse texto, foram para as praças, em grande parte abandonadas por suas comunidades e pelo poder público, para trazer vida e tomates para aqueles espaços. Na marra, aprendemos humildemente que estamos intimamente conectados com os ciclos naturais, que temos muito conhecimento espalhado pelas comunidades sobre como produzir alimentos saudáveis e orgânicos e que nossos agricultores são os grandes heróis e heroínas de nossa sociedade. Aprendemos a nos conectar com pessoas fora de nossas bolhas sociais, a olhar nos olhos, a discordar em paz e a construir em conjunto conhecimentos básicos para a resiliência local. Ou seja: aprendemos a criar comunidades, gerar uma identidade comum e voltar a reverenciar o alimento como nossa fonte primeira de saúde e soberania.

A alimentação é um regime de vida e é nossa profunda conexão com o divino. De um lado, a indústria nos tolhe o direito e a responsabilidade de reger nossas dietas alimentares, impondo produtos ultraprocessados, ocultando a importante história por trás das gôndolas e ditando o que devemos comer para sermos felizes e estarmos nutridos. Antes, isso era mediado pela cultura, fortemente enraizada em nossa identidade no território e nos hábitos apreendidos em longos almoços familiares. Hoje, é mediado pelas mídias, pelos ícones sensacionalistas de artistas e cozinheiros gourmetizados e pelas facilidades oferecidas congeladas e prontas para consumo.

Já nossa conexão com o divino foi tolhida por um sistema de produção desumano, que não considera felicidade no Produto Interno Bruto do país. Criamos uma burocracia prolixa, espaços urbanos mortos e uma constante exclusão social que impedem qualquer tentativa de transcendência. Além, é claro, da forte intolerância religiosa e o fanatismo que impossibilitam o mergulho profundo na espiritualidade e na convivência harmônica entre manifestações. Nosso divino, essa centelha que pulsa, acende e ascende em nossos corações, está adormecida sob camadas de julgamentos, preconceitos e falsas noções de ordem e progresso. Comungar o milho, retirado da “Montanha de Alimentos” (Tonacatepetl), ou a mandioca, nascida da cova de Mani, é um ato de coragem.

Uma hortinha ali na praça, por mais bagunçada que possa parecer, pode ser a ferramenta mais direta para uma reconexão profunda do que significa ser humano e vem em um tempo em que a humanização das relações e o empoderamento social nunca foi tão urgente. “Produzir seu próprio alimento é como imprimir seu próprio dinheiro.”, já disse o agricultor de guerrilha Ron Finley. E acrescento que participar de uma horta comunitária em seu bairro é a junção perfeita entre poder e amor. Soma-se a isso: a terapia, a ampliação de espaços verdes, o aumento de sociobiodiversidade, o refúgio para polinizadores e almas solitárias, a troca de conhecimentos e receitas da vovó e o fortalecimento comunitário.

Como disse o coletivo Ocupe & Abrace: Esta é a era das pessoas comuns. Nenhum herói virá nos salvar. Todos têm poder. Faça sua parte.

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Andre Ruoppolo Biazoti é gestor ambiental formado pela ESALQ/USP, micro-agricultor urbano e coordenador do projeto Cidades Comestíveis.

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3 comentários para "A urgência das hortas urbanas"

  1. RICARDOALCANTARA disse:

    Um texto incrivelmente inspirado!

  2. Graziele disse:

    <3 Que publicação necessária!!! Que tema urgente!!!

  3. ana paula de oliveira souza disse:

    Gostei muito do texto. Parabéns!

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