Mia Couto: para enfrentar as novas Guerras Frias

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Reflexão poético-política do escritor moçambicano serve de alerta à redução da maioridade penal ao lembrar: vivemos sob uma “Geografia do Medo” que, enquanto não decifrada, exigirá “produzir inimigos e sustentar fantasmas”

Por Inês Castilho

“O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.”

As palavras de Mia Couto, nome assumido pelo premiado escritor moçambicano Antônio Emílio Leite Couto em razão de seu amor pelos gatos, soaram alto no silêncio da Conferência Estoril de 2011 – a mesma para a qual Eduardo Cunha foi convidado agora em 2015.

Jornalista militante na guerra de libertação de seu país africano do colonialismo português, biólogo e professor de ecologia na universidade pública de Maputo, seu discurso “Murar o medo” foi lembrado pelo deputado federal Ivan Valente (PSOL-SP) ao se pronunciar, em reunião da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), contra a redução da maioridade penal proposta pelo presidente da Câmara.

“A Guerra Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo a Oriente e Ocidente”, diz ele, num vislumbre do futuro. “Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas”, diz Mia Couto na fala. E prossegue:

“Vivemos como cidadãos e como espécie em permanente situação de emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.”

Restrições que servem pra que não se façam perguntas como estas: “Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que motivo se gastou apenas no ano passado um trilhão e meio de dólares somente em armamento militar?”

Apontando como causa maior da insegurança do nosso tempo a fome, que atinge uma em cada seis pessoas no mundo e poderia ser superada com “uma fração muito pequena do que se gasta em armamento”, Mia Couto lembra outra violência silenciada.

“Em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante seu tempo de vida” – condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres.

“Sem darmos conta fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar, deixamos de fazer perguntas e discutir razões.”

Cita Eduardo Galeano: “Os que trabalham têm medo de perder o trabalho, os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm medo da fome têm medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas e as armas têm medo da falta de guerras.”

“Há quem tenha medo que o medo acabe”, conclui.

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