Sem Pena experimenta o personagem coletivo

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Focado na Justiça e sistema prisional, documentário de Eugênio Puppo inova ao renovar linguagem e também ao debater, muito mais que pessoas, as instituições que oprimem 

Por Jean Claude Bernardet, em seu blog

Já se comentou que os entrevistados de Sem pena, de Eugênio Puppo, não aparecem. É sem dúvida um esforço bem sucedido para escapar ao modelo desgastado das “cabeças falantes”. Mas o filme vai mais longe.

Há vários planos nas cadeias e arredores em que as cabeças são cortadas. Para preservar a identidade, as pessoas são filmadas do pescoço para baixo. Ou em plano aberto que não permita a identificação. Ou em plano desfocado. Ou em primeiro plano de costas (presídio feminino). Duas exceções: portas de cela em que presos se amontoam de frente e em foco.

Esses procedimentos, que desvinculam a cena ou a fala de um rosto, de uma expressão, de uma entonação, provocam um efeito de despersonalização fundamental para o filme. Ele gera o que podemos chamar de personagem coletivo. Contribui também para a construção desse personagem o depoimento de uma presa montado com planos de um arquivo com uma imensidão de caixas anônimas (tipo arquivo morto) cada uma remetendo a um preso ou processado.

O filme não trata deste ou daquele caso mas do conjunto dos presos e das presas.

Assim, quando, talvez já no último terço do filme, aparece o primeiro plano de um indivíduo, o espectador leva um choque: um juiz.

Antes do plano-choque há algumas digressões. O depoimento de um jurista oculto é acompanhado por bustos de bronze de autoridades judiciárias: enquanto o falante não é visto, as cabeças (do pescoço para cima) ficam mudas. Os bustos surgem depois desse longo processo de despersonalização: bela ironia. Esses bustos solenes e oficiais são o eco invertido de outras cabeças que apareceram anteriormente: o primeiro depoimento de um preso é acompanhado por pinturas em estilo digamos expressionista de rostos aterrorizados. E devemos acrescentar as duas portas de cela em que as pessoas não são individualizadas.

Na cena de audiência que abre com o plano-choque, a câmera se mantem próxima das pessoas envolvidas na situação, só o rosto da inculpada é ocultado. Essa sequência seria banal num filme de entrevistas ou de estilo observacional, forma comum do documentário atual. Aqui ela ganha uma força impressionante por ser o contraponto do processo de despersonalização que organizou o filme até então. Ela funciona como catálise.

Com a despersonalização / catálise, Sem pena contribui para a renovação da linguagem do documentário paulista.

Assim como os presos, os juristas e cientistas sociais entrevistados não são vistos. Mas o efeito é diferente, não se cria um personagem coletivo. Essas vozes off despersonalizadas constroem a imagem de uma instituição: sistema carceral / sistema judiciário.

Trabalhar a instituição é raro no cinema brasileiro. O americano Frederick Wiseman ou o francês Raymond Depardon são mestres no assunto. No Brasil a ideia de trabalhar uma instituição em si talvez só no Justiça de Maria Augusta Ramos.

Sem pena desloca a discussão: ele mostra que os sistemas carcerário e judicial são ruins. Mas acredito que ele não diz que se melhorarem vai ficar tudo bem, alguma coisa do tipo: precisa reformar a instituição. Graças a uma série de pequenas informações, como “polícia joguete nas mãos de políticos” ou “encarcerar a pobreza”, fica claro que o problema não é a má qualidade desses sistemas, mas que eles são mecanismos estruturais de opressão social.

Todo esse discurso é embasado numa construção visual que ritma o filme: a reiteração dos corredores. A câmera mostra ou penetra no corredor: a repetição dessa forma conectam os dois universos, carcerário e judicial. Forma corredor nas cadeias (beco, galeria de presídio feminino). Forma corredor no arquivo. Forma corredor nos palácios dos tribunais. Inicialmente o espectador não percebe a forma; é a repetição que a constrói. À medida que ela se constrói, associada aos discursos sem rosto, vai se formando a ideia de instituição. Sem pena é um belíssimo trabalho ensaístico.

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