Outra visão sobre Ninfomaníaca

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Para a sociedade, “vício em sexo” é doença. Para Lars Von Trier, apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar, para não se sentir doente

Por Bruno Lorenzatto*

Joe, a personagem principal de Ninfomaníaca, não é louca ou alienada, mas seu comportamento ou modo de vida é patologizado pela psiquiatria. Sua doença? O sexo compulsivo. Numa época em que a norma ou o normal significam nada menos que a produção e multiplicação das patologizações, das classificações intermináveis dos modos de vida como doenças possíveis, Joe é a resistência da vida que não se deixa capturar pelo discurso médico-psiquiátrico, isto é, em certo sentido, o discurso moral. De maneira que seus modos de subjetivação (isto é, como Joe se constitui como sujeito moral, racional, sexual etc no interior da sociedade) questionam o padrão, a norma, a pretensa igualdade entre os seres: a concretude da existência contra a abstração metafísica, tal é a luta que está em jogo em Ninfomaníaca.

Talvez seja preciso lembrar de Nietzsche — que subverte a dicotomia saúde x doença. Para a sociedade o “vício em sexo” é uma doença. Para Lars Von Trier é apenas mais uma das verdades inconvenientes que a burguesia não quer escutar (para não se sentir ela mesma doente).

Joe está além da moral porque não se preocupa em seguir as prescrições mais fundamentais impostas pelo código moral do Ocidente. Duplo crime, dupla marginalidade: ser mulher e ser “viciada” em sexo. A ética de Joe se dá precisamente onde não há mais ética pré-definida — este parece ser o ponto de vista delineado pelo filme. Ao afirmar sua diferença ou singularidade, Joe conjura a “Razão Universal”, recurso amplamente utilizado desde o iluminismo para prescrever normas e condutas morais. No entanto, a transgressão de Joe engendra uma ética possível: “Torna-te o que tu és”.

(Me pergunto se não seria possível uma abordagem feminista do filme: Joe, uma mulher: é o sujeito que fala. Joe, uma mulher: é o sujeito do desejo.)

Lá onde o espaço dos afetos, dos acontecimentos brutos e do “real” predominam, a história de Joe supera a ordem das representações – não há coerência ou ações previsíveis. O sujeito cede lugar às experiências contraditórias, limites e improváveis que o constituem, e ao mesmo tempo anulam sua aparente unidade, de modo a produzir uma multiplicidade de “Joes” irredutíveis. Espaço subjetivo sem dúvida perigoso e desconcertante, no qual a vida da personagem radicalmente se desdobra.

Importante observar: mesmo a culpa manifestada pela personagem, em decorrência de seus “desvios”, é ambígua, culpa performada ou teatralizada, em todo caso, provisória. Embora chame a si mesma de “mau ser humano” (essa fala se repete algumas vezes), deixa claro: a sociedade que a patologiza, Joe afirma, é ela mesma doente.

Lars Von Trier não oferece respostas ou soluções. Ele não se preocupa em responder as aporias, que atravessam a vida contemporânea, tematizadas em Ninfomaníaca. Sua abordagem é a da problematização, da abertura dos paradoxos que formam historicamente a sociedade ocidental. A sexualidade, o crime, o desvio, a norma, a doença, a verdade, a afirmação da vida, ou a negação da vida – tais são os temas que percorrem o filme. Se há uma tomada de partido (e creio que há) na estética de Ninfomaníaca, esta é: escutemos com atenção os paradoxos que constituem a sociedade – os mesmos que nos subjetivam.

Bruno Lorenzatto é licenciado em História e mestre em Filosofia pela PUC-Rio

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9 comentários para "Outra visão sobre Ninfomaníaca"

  1. Felipe Moura disse:

    Tentativa de análise foucaultiana, típica de aluno de segundo ano de faculdade de filosofia ou que tais.

  2. André disse:

    A partir do momento que a ninfomania NÃO é camuflada ou omitida dos parceiros e não coloca em risco a vida de outras pessoas, tudo bem.

  3. André disse:

    A partir do momento que a ninfomania é camuflada ou omitida dos parceiros e não coloca em risco a vida de outras pessoas, tudo bem. Mas em tempos de HIV esse tipo de comportamento associado a mentira (mitomania), algo que pode acontecer em transtornos psiquiátricos como a Bipolaridade, passa a ser um sério problema de saúde pública.

  4. Bruna disse:

    Boa tarde Bruno.
    Estou fazendo um trabalho sobre mulheres ninfomaniacas, e para aquelas que procuraram um tratamente, você sabe ou conhce alguma que se “curou”?

  5. Bruno Lorenzatto disse:

    Oi Tiago, obrigado por ter lido o texto. Infelizmente não saberia dizer de cabeça onde Nietzsche trata dessa questão. Certamente em alguns textos, é um tema recorrente. Acredito que em Genealogia da Moral ele passe por essa questão.
    Abraço,
    Bruno Lorenzatto

  6. Bruno Lorenzatto disse:

    Oi Fábio! Obrigado por ter lido o texto e pelo comentário. Muito pertinente sua leitura. Penso o mesmo: “a concretude da existência contra a abstração metafísica, tal é a luta que está em jogo em Ninfomaníaca.” Embora eu não tenha deixado claro que esse elemento universal é sentido, sim, na carne. Mas me parece que tem uma relevância maior pensar essa resistência da Joe ao universal, essa vida que não se deixa capturar. As falas dela no grupo de terapia e o assassinato no final, por exemplo, são dois episódios que problematizam a culpa que ela por vezes manifesta. No final das contas, ela afirma seu modo singular de vida, mesmo tendo contra si todo o peso do elemento universal.
    Abraço,
    Bruno Lorenzatto

  7. Fábio Nogueira disse:

    Concordo com quase toda a análise. Mas falta dialética, digamos assim. O elemento universal e abstrato é realmente ligado à experiência de Joe. Ele tem um peso real, e não meramente nominal, como se fosse uma etiqueta sem efeito sobre o objeto. O seu sofrimento não é “teatralizado” nem “ambíguo”, mas experimentado na carne. É dessa tensão que trata o filme: a singularidade contingente da vivência da personagem no contato com a norma abstrata real da sociedade por meio da qual a sua própria experiência é visualizada e sofrida.

  8. Tiago disse:

    Bruno, gostaria de saber aonde Nietzsche faz essa subversão entre saúde X doença. Seria de grande ajuda para minha pesquisa, obrigado!

  9. Osmair Santos disse:

    Quando tratamos o caso em tela como vicio. Só vejo uma questão que poderia ser um problema, que seria algum tipo de degeneração que ele – O vício, poderia causar.
    A personagem do filme tem um comportamento que é agressivo, um choque para a sociedade atual, que ainda insiste em esconder os seus problemas. Ao invés de tratá-los.

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