Por que o Uruguai não é aqui?

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Festa de rua celebra domingo, em SP, país que conquistou casamento homossexual, direito a aborto e legalização maconha. Que condições políticas tornaram isso possível?

Por Gabriela Leite

Às 3 da tarde deste domingo (8/12), uma bandeira uruguaia será hasteada, de modo performático, no centro de São Paulo. Estará dado o sinal de largada para uma sucessão de intervenções artísticas, oficinas, rodas de conversa, cenas de música, teatro, graffiti. Às 18h33, haverá cerimônia simbólica de casamento coletivo e beijaço. Centenas de pessoas celebrarão, em festa, as notáveis conquistas político-culturais alcançadas pelo país vizinho, nos últimos anos: reconhecimento do casamento gay, direito ao aborto e, muito em breve, legalização do uso e plantio da maconha. Tudo se dará num palco emblemático para as novas lutas sociais: o Minhocão, enorme elevado viário no centro de S.Paulo, recuperado nos últimos anos para festas que reivindicam o Direito à Cidade. Em meio ao desfrute (veja programação ao final), valerá a pena fazer duas perguntas: como isso foi possível, enquanto o Brasil se defronta com a assombrosa influência do conservadorismo em suas decisões institucionais? Que caminhos nos aproximariam de tais avanços?

Natural de Montevidéu, a capital, o escritor Eduardo Galeano costuma dizer que o Uruguai é “o paradoxal país em que nasci e voltaria a nascer”. Parece palpite certeiro. A formação histórica e econômica não difere muito da nossa. Colônia espanhola (disputada com frequência por Portugal), tornou-se, após a independência, exportador de matérias-primas: à época, carne e couro. Ainda hoje, os produtos primários são quase onipresentes em sua pauta de vendas ao exterior. 

Além disso o Uruguai, um “paraíso fiscal”, possui sistema financeiro agigantado. Seria de esperar, nestas condições, uma influência massacrante do conservadorismo rural e da oligarquia financeira, sempre empenhados em concentrar riquezas e investir contra direitos sociais. No entanto, a nação foi pioneira da América do Sul no reconhecimento do voto feminino (1927) e na legalização do divórcio (1907, 70 anos antes do Brasil). Garantiu educação obrigatória e gratuita ainda no século XIX. Reduziu a jornada de trabalho para 8 horas nos anos 1910 (antes dos EUA e da França) e regularizou, à época, a venda de bebidas alcoólicas, revertendo os lucros em saúde pública.

A explicação para as contradiões destacados por Galeano está, provavelmente, na política. Desde sua formação, há duzentos anos, o Uruguai viveu três enormes impulsos transformadores. Eles abalaram as raízes conservadoras e constituíram, aos poucos, uma tradição de relativa igualdade, laicismo e rejeição de preconceitos morais. O primeiro grande movimento vem das lutas de independência.

Ao contrário do que ocorreu no Brasil, a autonomia em relação à Espanha não foi promulgada pelo príncipe regente, mas conquistada em luta comandada por José Artigas, um militar esclarecido e republicano. Por sua inspiração, o Congresso do Oriente, formado após a independência (em 1815), estabeleceu a distribuição de terras (inclusive para os negros e viúvas), a primeira tentativa de criar a escola pública, leis aduaneiras que buscavam promover a produção nacional. O processo foi sufocado um ano depois, quando a coroa portuguesa, então sediada no Brasil, invadiu o país (submetendo-o até 1925).

A segunda grande arrancada anti-oligárquica começou quase um século depois e foi comandada – outro paradoxo – por um membro da elite. O jornalista José Battle y Ordoñez governou o país por dois mandatos, entre 1903 e 1915. Vinha de uma família de políticos (o pai fora presidente) e de um dos dois partidos tradicionais, o Colorado. Mas encerrou a última guerra civil e estava em contato com o clima de agitação social e questionamento da ordem burguesa que marcava a Europa. Era um admirador da Revolução Soviética e de Lênin, sobre quem escreveu um obituário digno1.

Coerente com a ideia de superar as antigas relações sociais, canalizou a riqueza agrícola de um país pouco povoado (3,5 milhões de habitantes hoje; apenas 1 milhão, à época) para construir o que foi, provavelmente, o primeiro estado de bem-estar social do mundo. Estatizou e universalizou os serviços públicos e de infra-estrutura, estendeu a previdência social para todos. No campo do trabalho, novas leis instituíram, além da redução da jornada, a indenização para os demitidos. No terreno moral, o direito ao divórcio estabelecia que a separação poderia ser requerida por simples manifestação de vontade da mulher, algo quase inconcebível para a América do Sul de então.

O Uruguai não ficou imune, ao longo do século XX, às turbulências e retrocessos que marcaram a região. Uma tentativa de industrialização, iniciada no pós-II Guerra, fracassou em pouco tempo, sufocada pelo peso dos setores primário e financeiro. Uma ditadura militar, instaurada “a convite” de um presidente civil estendeu-se entre 1973 e 85. Ao se esgotar foi substituída, como em toda a América Latina, por uma sucessão de governos claramente identificados com a ideia de supremacia dos mercados sobre as sociedades.

Mas as tradições igualitária e libertária, além do apreço pelos serviços públicos voltariam a se manifestar já em 1992, num episódio inesperado. No período em que o pensamento neoliberal era mais forte, um plebiscito convocado por iniciativa popular interrompeu, com apoio de 72% dos eleitores, as privatizações. Uma década depois, quebrava-se um século e meio de domínio da política institucional pelos partidos Colorado e Blanco. A Frente Ampla, formada em 1971 por socialistas, comunistas e battlistas (a corrente que tem como referência as ideias do presidente Battle) – e clandestina durante toda a ditadura militar –, conqusitava a presidência.

Os mandatos dos dois presidentes que governaram desde então (Tabaré Vasquez e José Mujica) também não são isentos de contradições. A economia continua baseada em agropecuária e finanças. No mandato de Tabaré, o Uruguai envolveu-se numa áspera disputa com a Argentina (a “crise das papeleras”), ao autorizar a instalação, em seu território, da empresa finlandesa de celulose Botnia, rechaçada no país vizinho por provocar poluição.

Mas certas particularidades têm impedido que o Uruguai escorregue para o pântano de democracia esvaziada que se propaga em todo o mundo. Num quadro institucional menos fisiológico e confuso que o brasileiro, a Frente Ampla tem conquistado maiorias parlamentares e governado sem recorrer a coalizões de ocasião. Seu programa econômico e sua visão das relações intenacionais são heterogêneos. Talvez o que melhor a caracterize e unifique seja, precisamente, o compromisso com os serviços públicos, o laicismo e a rejeição aos preconceitos.

Suas relações com os movimentos sociais e a sociedade civil seguem ativas, depois de dez anos no governo. Um grupo de militantes, em seu interior (as Redes Frenteamplistas) mobiliza-se para articular formas de democracia direta, em especial as articuladas pela internet. Teve papel importante nas disputas internas da Frente Ampla que definiram a candidatura de José Mujica às eleições presidenciais de 2009. O perfil despojado e irreverente do atual chefe de governo somou-se a sua coragem para levar adiante as propostas de libertárias do partido. A legalização do aborto até a 12ª semana de gravidez veio em 2012. O o casamento gay foi acolhido pela legislação neste ano, apesar dos questionamentos da igreja católica. Inclui a adoção de crianças por casais homossexuais.

Caso aprovada, nos próximos dias, a legalização do uso da maconha será um exemplo internacional. É bem mais completa que a vigente em países na Holanda, por exemplo. Segundo a nova lei, a ser votada em dias no Senado, o plantio para consumo próprio é permitido (dentro de limites); e o Estado controlará a venda do psicoativo, fazendo registro de seus usuários e estabelecendo tetos para consumo. Mujica, prefere afirmar que não está legalizando a maconha, mas regulamentando seu uso – ao invés de conformar-se à hipocrisia.

Por isso, a celebração em São Paulo, neste domingo, é mais que uma festa. Ela oferece a oportunidade de refletir sobre como ainda é possível – mesmo em tempo de declínio da política – explorar as contradições do sistema, alcançar vitórias parciais importantes e sondar caminhos para reinventar a democracia.

Domingo, 8/12

O Uruguai é aqui

Manifestação pela legalização do aborto, casamento gay e maconha

Convidam:

Marcha da Maconha São Paulo, Marcha Mundial das Mulheres, Coletivo Anastácia Livre, Liga Brasileira de Lésbicas, Bloco da Esquerda Canábica, Coletivo Desentorpecendo a Razão, Associação Cultural Cannábica de São Paulo e Centro de Convivência É de Lei.

Programação:

15h

– Hasteamento da bandeira uruguaia

– Grafite

– Grupo de palhaços

– Oficina de cartazes

– Música temática

16h20

– Rodas de conversa sobre legalização das drogas, do aborto e do casamento homoafetivo

17h42

– Banda Chaiss na Mala

– Banda Emblues

– Grupos de dança e teatro

18h33

– Cerimônia simbólica de casamento coletivo e beijaço

– Intervenção de redução de danos

1Lá se lê, por exemplo, que “Esta revolução [soviética] sacudiu em sua medula uma nação que, em pleno século XX, consevava a estrtura dos tempos bárbaros. Tem de ser fecunda e positiva, apesar de seus erros e contradições, que são oc companheiros inseparáveis de todo empreendimento humano”

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11 comentários para "Por que o Uruguai não é aqui?"

  1. Rodolfo Bier disse:

    O que dizer do meu pais, quando ha 20 anos moro em Sao Paulo…
    Que fomos “fundados” por anarquistas espanhois e italianos no comeco do 1900…
    Que tivemos um presidente chamado José Batlle y Ordoñez que ainda hoje se estuda em certas faculdades no mundo como o denominado socialismo uruguaio, uma vanguarda (1920…por ai)
    que somos hipermegapolitizados desde que somos adolescentes
    que somos humildes e discretos em geral (verdade!)
    que no uruguai é bem dificil ser rico ou fazer dinheiro, e que a maioria é de classe média mesmo….
    que Punta del Este está no Uruguai, mas não é Uruguai, Uruguay é outra coisa…
    que a Democracia vai com a nossa essência, é quase o DNA
    que parece coisa de loucos, mas até o mais famoso tango do mundo, La Cumparsita, é uruguaio
    Que agora até parece que determinaram que o Carlos Gardel, também era,
    Que ninguem entende como um paisinho de 3 milhoes (menos gente que a zona leste de Sao Paulo), cheio de velhos, consegue ser bicampeao do futebol do mundo, e ser o maior campeao da Copa América….nem nós entendemos como…
    que o pais tem 11 milhoes de vacas e 13 milhoes de ovelhas,
    que agora cada aluno do ensino público tem um pequeno laptop gratis…
    que a insegurança aumentou nas ultimas décadas, mais é ridícula comparando com outros vizinhos
    que o Raul Cortez disse certa vez que o melhor público de teatro é o público uruguaio.
    que o Pepe Mujica é um pensador e filósofo que se meteu na historia mundial para sempre
    sei lá….no fundo…no fundo….eu mesmo continuo sem saber bem…o que é ser uruguaio…..mas mesmo assim, devo confessar que é reconfortante de vez em quando olhar para o meu RG, celeste e branco

  2. Silvestre disse:

    Estou gostando do site, entretanto é chato não ter referências. Ah, praticamente todas as páginas que visitei tem erro de digitação.

  3. marcio ramos disse:

    VIVA os Blogs Sujos que salvam o jornalismo brasileiro com seu apaixonado trabalho!!!!
    …texto muito legal da Gabriela, valeu, e eu nem sabia desta historia dos vizinhos do sul…
    … estamos na terceira geração de maconheiros aqui em casa e precisamos fumar escondidos da policia… absurdo!!!!

  4. alfredo disse:

    buena la materia, resume bien, y es eso mismo, falto resaltar dos cosas,una la legaliacion de la prostitucion, con derecho a jubilacion y atendimiento medico regular. y otro detalle, el argumento de polucion ante el conflicto de las papeleras con argentina, si bien es real, es encubierto, ya que el principal motivo fue que no se instalo en argentina, de ahi la reaccion de los hermanos.

  5. Paulo Braga disse:

    A gente podia fazer um movimento para o Uruguai anexar o Brasil…

  6. Michèle Sato disse:

    EXCELENTE MATÉRIA! PARABÉNS!
    o uruguai poderia mesmo ser aqui!
    viva los hermanos

  7. Palermo Bronx disse:

    Impecável análise histórica comparativa. Brilhante artigo.

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