Síria: em vez dos Tomahawks, alguma esperança

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Frustrado o ataque norte-americano, surgem os primeiros caminhos de pacificação. Sociedade civil reivindica participar das negociações sobre o pós-guerra civil

Por Cauê Seignemartin Ameni

Erudito e sofisticado, porém partidário da ordem liberal, o historiador britânico Timothy Garton Ash comentou com irônica amargura o arranjo diplomático que impediu, há semanas, uma intervenção norte-americana na Síria. Depois de destacar o claro declínio de Washington no cenário global contemporâneo, ele alfinetou: “aos críticos e inimigos dos Estados Unidos, digo apenas: se vocês não gostavam do velho mundo em que os EUA intervinham regularmente, esperem para ver o novo, em que isso não ocorrerá”.

Menos de um mês depois, está surgindo, precisamente na Síria, um primeiro desmentido ao vaticínio de Timothy. A alternativa desenhada pela ONU, para evitar o ataque dos EUA, está sendo implementada. Livres dos mísseis Tomahawk, que teriam agravado os horrores e o labirinto da guerra civil, governo e parte da oposição armada abriram algum diálogo – que pode isolar as redes terroristas ligadas à Al-Qaeda. Fala-se mais frequentemente num processo de negociações para reconstruir o país. Grupos da sociedade civil reivindicam presença no processo.

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Os primeiros sinais concretos de esperança brotaram terça-feira (1º/10). Inspetores da ONU chegaram a Damasco, menos de uma semana depois de firmada a resolução do Conselho de Segurança para desmantelar os estoques de armas químicas do governo, sem atacar o país. As circunstâncias de sua chegada expõem o caos provocado pela guerra civil. Deslocaram-se numa caravana de carros, partindo de Beirute, porque a via que liga a capital síria a seu aeroporto é território conflagrado.

Mas mostraram-se confiantes. Declararam que pretendem cumprir o desafio de localizar e destruir, em alguns meses, as armas. No domingo, o presidente do país, Bashar Assad, dissera, numa rara entrevista à TV pública italiana, que terão plena liberdade de ação. No mesmo dia, um diretor da Organização pela Proibição das Armas Químicas (OPAC), a agência da ONU encarregada de cumprir a resolução do Conselho de Segurança, fez afirmações otimistas, à agência Al Jazeera. “Até o momento, não temos absolutamente razão alguma para duvidar das informações [sobre as armas] oferecidas pelo regime sírio”, disse ele.

Na segunda-feira, um indício de outra natureza – porém igualmente importante – sugeriria possibilidade de desarmar a lógica da guerra. Famoso por seu vasto conhecimento sobre o Oriente Médio, o jornalista britânico Robert Fisk publicou, no The Independent, de Londres, notícias surpreendentes. Em Damasco e em meio à guerra civil, revelou ele, foram abertas negociações entre o governo e o Exército Sírio Livre (FSA, em inglês) – principal grupo de oposição não fundamentalista. Os contatos são frágeis, mas já produziram alguns resultados. Em Aleppo, cidade controlada pelo FSA, as escolas e instituições públicas foram reabertas. Apesar das feridas, provocadas de parte a parte, cresce o sentimento de que o país – conhecido no passado por sua tolerância e convívio intercultural – precisa ser reconstruído. Ambos os lados têm um desafeto comum: as redes terroristas ligadas à Al Qaeda, capazes de atos que, em meio a uma guerra brutal, chocam por sua selvageria extrema.

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Foi a ausência de um ataque militar norte-americano, aliás, que tornou públicas as fissuras entre os distintos grupos armados que compõem a oposição ao regime. Ontem (2/10), Ghayth Armanazi, um conhecido especialista em questões sírias, procurava descrever, no The Guardian, o novo panorama. Nos dois anos de guerra civil, contou ele, o FSA (composto principalmente por desertores do exército sírio) e seus aliados civis cometeram um erro fatal. “Ao invés de formular um programa de transformações democráticas, aliaram-se a fundamentalistas islâmicos, num acerto que afastou muitos sírios de orientação secular”. Ambas facções confiavam numa ação dos EUA capaz de debilitar Assad e abrir caminho para sua vitória bélica. Como Washington não pôde socorrê-las sentem-se humilhadas e desprestigiadas: “passaram a ser vistas pela rua árabe como quem convocou um assalto imperial armado do Ocidente contra seu próprio país”…

Esta derrota estratégica as separou. Em texto recente, o jornalista Pepe Escobar relata que, nas últimas semanas, os grupos ligados à Al Qaeda – em especial a chamada Frente Al-Nusra – têm preferido atacar o FSA a combater o próprio governo. Além disso, ampliaram seu repertório de crimes contra a humanidade. Ainda em setembro, barbarizaram as cidades de Raqqa e Maloula, redutos cristãos que estavam até então distantes da guerra. São conhecidos por atos como a decapitação sistemática de prisioneiros e por cenas grotescas: recentemente, imagens de TV registraram um combatente da Al-Nusra dilacerando o corpo de um inimigo morto em combate para devorar-lhe o fígado, diante das câmeras. Fortemente financiada pela Arábia Saudita, a facção tem conseguido atrair parte dos combatentes do FSA. Mas este movimento tende a isolá-la, ao abrir espaço para uma aproximação entre a oposição “moderada” e o regime.

Qual o horizonte de uma possível negociação que ponha fim à guerra? Há meses, circula a proposta de uma conferência de paz batizada de Genebra II. É iniciativa da ONU, que nela vislumbra a possibilidade de construir um caminho para a reconstrução da Síria. O governo sírio tem se declarado disposto a participar, desde que a ideia foi lançada. Mas a conferência tem sido adiada indefinidamente, devido à exigência da oposição, pela renúncia prévia de Assad.

Nas últimas semanas, a proposta voltou a ganhar força. Além disso, em mais um sinal favorável à paz, grupos da sociedade civil síria têm afirmado reivindicação de estar presentes. “As cadeiras à mesa de negociações não podem estar reservadas apenas a homens em armas”, argumenta o advogado norte-americano Mel Duncan, da ONG internacional Nonviolent Taskforce. Num texto publicado em 5/9, no site alternativo norte-americano Minnpost, ele relata os contatos que manteve na Síria, em maio, com grupos civis, membros do governo e do FSA. Lembra que os grupos combatentes na Síria agem, em certo sentido “por procuração”, transferindo para o país os ódios gerados em outros conflitos – como EUA X Rússia, Irã X Arábia Saudita, Israel X Hezbollah. Frisa que, para muitos de seus interlocutores na sociedade civil (partidários do governo ou opositores), o principal adversário é a Al Qaeda. “Não queremos viver sob a lei da sharia”, exclama um de seus contatos.

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Num outro artigo, para a Al Jazeera, a jornalista independente norte-americana Rania Khalek descreve, com ainda maior detalhe, as agruras e esperanças dos grupos de oposição não-armada. Foram eles, lembra Rania, que deflagraram a luta contra Assad, em abril de 2011, logo após o início da Primavera Árabe. Rapidamente, porém, sua mobilização foi engolfada por grupos militarizados opostos. Onde prevalece a violência, calam as ideias. Tais grupos não têm condição alguma de influir nos rumos da guerra.

Passaram a se dedicar, prossegue Rania, á mobilização política de base: “uma florescente rede de mídias alternativas, conselhos de base para organizar o socorro humanitário, projetos como o ‘ônibus da dignidade’ (Karama Bus), que circula pela província de Idlib oferecendo apoio sóciopsicológico a crianças desalojadas. O texto cita a oposição de Khaled Harbash, um jovem de 21 anos que integra estas redes, ao ataque que Washignton queria promover. “Os Estados Unidos não são um juiz internacional para punir e perdoar quem desejem (…) Qualquer ataque militar não será contra o regime, mas contra o país. E quem sofrerá as consequências são os sírios, já vitimados por dois anos e meio de guerra civil”, diz ele.

Bloqueado o ataque norte-americano, é possível que Khaled e seus companheiros possam sonhar de novo com um país pacificado e democrático.

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