Egito: massacre, fundamentalismo e… o papel dos EUA

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Num país tumultuado após derrubada do presidente eleito, dezenas de manifestantes foram mortos sábado. Mas Washington evita romper com militares…

Por Vinicius Gomes

No começo do mês de julho, Mohamed Mursi, o presidente egípcio eleito durante a Primavera Árabe, foi deposto pelo exército, após milhões de pessoas irem às ruas pedindo o fim de seu governo. É isso mesmo. Pouco mais de um ano após ser eleito, em maio de 2012, Mursi foi afastado do cargo. Tem se falado muito em golpe de Estado, outros chegam a dizer que foi uma ação contra o despotismo. Para contextualizar a situação do Egito, é necessário entender sua importância geopolítica.

Por décadas, o país tem sido a ponte entre o Ocidente e o mundo árabe no Norte da África e no Oriente Médio. Tudo o que afeta o Egito, invariavelmente afeta a região. Além disso, foi, junto com a Tunísia, o primeiro país a ter eleições após a Primavera Árabe e também, assim como a Tunísia, os partidos que venceram foram os islâmicos conservadores. Coincidência ou não, o primeiro ministro da Tunísia, Ali Larayedh, também tem sofrido pressão popular para deixar o cargo.

A principal alegação para o descontentamento do povo egípcio seria a de que Mursi estava representando apenas os interesses de seu partido (Partido da Justiça e da Liberdade), um braço político da Irmandade Muçulmana. Esse teria sido o seu grande erro. O presidente não teria levado em consideração que a grande maioria dos que participaram dos protestos de 2011 não fazia parte da Irmandade. Eram, na realidade, uma juventude liberal, que se revoltou ao perceber uma “islamização” conservadora no governo. A nova Constituição, redigida por uma Assembleia Constituinte eleita pelo voto popular, teria incorporado princípios islamizantes.

Após a deposição de Mursi, foi a vez da Irmandade ir às ruas. Mas dessa vez, o exército estava do outro lado. E no último sábado, as forças de segurança do Egito atiraram em manifestantes que se concentravam em frente a uma mesquita. Mataram mais de setenta pessoas, ferindo outras centenas.

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É o pior massacre na história do Egito pós-Mubarak. Algumas circunstâncias agravam o crime. Os manifestantes estavam desarmados; o exército atirou para matar, uma vez que todos os ferimentos a bala foram disparados na cabeça e no peito dos manifestantes.

O horror se estendeu ao necrotério. Um médico relatou que “não tínhamos espaço suficiente, nos congeladores, para encaixar todos os corpos. (…) Tínhamos de fazer as autópsias no chão. Às vezes tivemos que pedir aos familiares para nos ajudar com o processo”. E o massacre contra a Irmandade não foi o primeiro. Há duas semanas, um ataque de características muito semelhantes terminou com 51 mortos.

Papel de Washington: A derrubada de um governo eleito democraticamente pelos militares e os dois massacres já praticados por estes, poucas semanas após tomarem o poder estão colocando em xeque a posição dos Estados Undios. Dispositivos legais norte-americanos exigem romper ajuda financeira a países que tenham vivido golpes de Estado, até que um novo governo legítimo seja empossado. Mas Washington não parece disposta a romper com o exército egípcio.

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A resistência tem a ver com o esforço dos EUA para manter seu poder geopolítico sobre o Oriente Médio – e, em especial, para garantir tranquilidade a Israel, principal aliado norte-americano na região. Os militares egípcios jogam enorme papel neste projeto. Recebem de Washington, desde os acordos de paz da Camp David (1979), “ajuda” anual direta de 1,5 bilhão de dólares. Graças a estes recursos, mantiveram-se no poder nos tempos do ditador Mubarak – e parecem dispostos, agora, a reassumir o governo, do qual foram afastados pela Primavera Árabe.

Esta relação especial está levando o Congresso norte-americano a malabarismos retóricos, após o massacre de domingo. Num texto publicado segunda-feira, no New York Times, o repórter Eric Schmitt relata que a senadora democrata Dianne Feinstein foi voz isolada, ao defender a suspensão da ajuda ao exército egípcio. A tendência vastamente majoritária de seus colegas foi fazer declarações formais contra o ataque aos militantes islâmicos; mas evitar a qualquer custo a palavra “golpe”…

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3 comentários para "Egito: massacre, fundamentalismo e… o papel dos EUA"

  1. benjamim lima disse:

    Alguém duvida que esse golpe foi tramado em Washington?
    A “democracia” só interessa aos EUA e ao mundo ocidental se ela serve aos interesses imperialistas dos EUA. Caso contrário a “democracia” se torna ditadura. O mesmo acontece com os governantes mesmo nas “democracias”, eles só são “democráticos” se defenderem os interesses americanos e da Europa Ocidental. Caso contrário,são demonizados e transformados nos mais cruéis ditadores. Eainda tem gente que se ilude com a farsa da “democracia”!!

  2. JORGE R S ALVES disse:

    A hipocrisia norte-americana perdeu a vergonha! É o que se pode deduzir das declarações do secretário de estado norte-americano Kerry ao endossar as ações de um grupo armado que deu um golpe de estado depondo o presidente eleito do Egipto, ao negar tal fato.
    O agravante é que, no caso, esse grupo armado é o próprio exército egipcio que tem sído, há muitos anos, um governo paralelo do país, alem de sustentáculo do ex-ditador, função tanto do seu poder de coação militar como dos interesses economicos que controla, tudo com o generoso apoio financeiro norte-americano.
    A deposição do ex-ditador Mubarak por um movimento popular, tão saudada inicialmente como expressão democrática da população em função da liderança inicial do movimento por liberais pró-ocidente, passou a ser motivo de preocupação quando, em eleições livres, permitiu que chegasse ao poder formal a Irmandade Muçulmana, influente junto à maioria da população – da qual obteve seus votos – e cujos principios não se coadunam com os “valores ocidentais”, ou, em outras palavras, os interesses norte-americanos.
    Aquilo que o “mundo ocidental” esperava ser fundamentalmente uma mudança de forma de governo – troca de uma ditadura por uma “democracia representativa” – sem mudança efetiva com relação ao exercicio do poder real, que, permitiria uma maior penetração da influência ocidental no país, desmoronou, colocando em risco a influência geo-politica norte-americana numa região extremamente sensível aos interesses do seu aliado e país-“irmão” Israel.
    O fato da Irmandade ter assumido que a democracia existe de fato e não apenas de direito e ter acreditado que, por principio, o resultado das urnas que a tinha levado ao poder lhe permitiria orientar o país em direção a seus valores sem precisar desmontar de imediato as estruturas de poder remanescentes do estado ditatorial (exército e judiciário) foi um erro crasso. Que se mostrou fatal.
    A única coisa que as forças de poder real egipcio tiveram que fazer – sob o olhar passivo, e ações ativas, dos governos ocidentais – foi “nada fazer”, deixando que a deterioração da situação economica e a falta de reestruturação dos poderes nacionais (executivo, legislativo e judiciário) colocassem o governo da Irmandade em “cheque”.
    Hoje como ontem como amanhã, as potências hegemônicas agem de acordo com seus próprios interesses, únicos principios que efetivamente reconhecem. O problema é que no mundo de hoje não têm como não mostrar o que são!

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