Literatura fora dos trilhos – mas ao embalo do trem

Foto tirada do blog do autor: buzo10.blogspot.com

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A tarde em que o escritor Alessandro Buzo narrou, a poucos metros da Estação Perus, sua trajetória literária despertada por um motim ferroviário

Por Bruna Bernacchio

Periferia de São Paulo. Do centro, uma viagem. Metrô até Barra Funda, baldeação pro trem. Uma viagem quente, de constante desconforto, dividindo o espaço com outras dezenas de trabalhadores, igualmente cansados e loucos pra chegar em casa. As janelas são extremamente pequenas se comparadas ao ar que precisaria circular; os bancos antigos, duros. À medida que o trem se afasta do centro da cidade, a paisagem muda: os arranhas-céus são substituídos por indústrias, casas e barracões; o verde cada vez mais volumoso começa a soltar seu cheiro, muitas vezes despercebidos graças às obras, eternas obras. O veículo passa pelo fim da Francisco Matarazzo, mais algumas estações, e o destino chega: Perus.

A Estação Perus é grande, toda de tijolo, com aparência de que carrega muita história. Foi importante base da ferrovia, quando construída. Dessa época de auge, uma foto preto e branca mostra a fila do pão que dá a volta na única praça. A imagem, desgastada pelo tempo, é uma de muitas outras em uma pequena exposição “História do Perus”, na Biblioteca Pública Padre José de Anchieta, e mostram sempre os mesmos lugares: a praça, a igreja e a fábrica de cimento. É nessa mesma biblioteca que, décadas depois, aconteceu um dos diversos eventos da “Mostra Estéticas das Periferias”.

Encontro com o escritor Alessandro Buzo, adolescentes de escola vizinha enchem a pequena sala para receber o visitante. Vem como sempre aparece em seus quadro da televisão: boné na cabeça, sorriso e fala malandra; chega pedindo desculpas pelo atraso e diz que vai contar sua história – rapidamente, pra não chatear. Mas não teria como, além dos jovens já serem fãs, o cara fala a mesma linguagem, a plateia só ouve.

Nascido no Itaim Paulista, zona leste da cidade, em meio à violência, crime e drogas, virou escritor de repente, nos anos 90. Era office boy – na época a moto pro serviço ainda não era usada, então seu meio de transporte era o trem –, e foi depois de um corriqueiro acontecimento que ele descobriu seu talento. A situação do transporte, que já era insuportável, piorou ainda mais depois de uma série de incêndios-protestos. Os vagões não foram repostos por cinco meses. Não discordava dos manifestantes, mas percebeu que naquele formato de nada adiantava. Decidiu então escrever um texto, e mandá-lo para a ouvidoria da CPTM. Não foi ouvido por quem deveria, mas aquilo o fez querer levantar a voz. Distribuiu no próprio trem seu texto intitulado Ferrovia nua e crua.

Para sua surpresa, pessoas o procuraram nos dias que se seguiram, elogiando-o, sentindo-se representadas. Até que um ou outro sugeriu: por que você não escreve um livro? Dez meses depois, em 1998, entregava um caderno com seu primeiro escrito a um amigo que iria digitar no computador. Mandou-o pronto para editoras e empresas, pedindo patrocínio. Nenhuma resposta. Em editora independente, O Trem – baseado em fatos reais custaria cerca de 3 mil reais, um valor inalcançável para quem, naquela época, vendia alimentos por telefone.

Mas a sorte também foi lhe encontrar. E um aparecimento em reportagem da TV Globo, com autores que estavam tentando publicar suas obras, fez com quem todos a sua volta soubessem do livro de gaveta. Inclusive o gerente da emprsa onde trabalhava, que contou o episódio ao patrão. Este leu, aprovou e resolveu custear um terço da impressão. Os outros dois foram pagos em muitas prestações.

Primeiro desafio vencido, inspiração para criar um segundo livro: Suburbano Convicto – Histórias do Itaim Paulista – expressão que virou sua marca registrada -, e um terceiro, O Trem – Contextando a versão original. Ambos foram publicados por outra editora independente.

Escrever nunca lhe deu dinheiro, mas vira e mexe ele era chamado para dar palestras e falar em veículos de mídia, o que mantinha a chama do sonho acesa. Nesse momento se questionou, deparando-se somente com obras que falavam da realidade: “sou jornalista ou escritor?” E foi então que Alessandro se deu mais um desafio, redigir uma ficção. Saiu Guerreira, sobre uma menina de classe média que se torna uma viciada em crack, acaba se afundando em muita lama e, numa luta desordenada, não exatamente de glória, consegue sobreviver.

Para Alessandro, foi a partir dessa história que seu barco passou a ser levado sozinho pelo rio. A Editora Global publicou, ele começou a fazer uma série de viagens. Em uma delas, para o Fórum Social Mundial, foi convidado pela escritora Heloisa Buarque de Hollanda a escrever um livro sobre sua vida. Conseguiu terminar Favela toma conta, em apenas três meses. Foi quando optou por largar seu emprego e dedicar-se somente à cultura.

Conseguiu um trabalho mal remunerado em uma produtora audiovisual de amigos, mas que dava o sustento e o tempo que queria para escrever. Começaram a surgir também oportunidades para tornar-se cineasta. Fez quadro no programa Manos e Minas, apresentado por Mano Brown na TV Cultura e, mais tarde, o quadro SP Cultura, no SPTV, da Globo. Novamente, realização que incentiva: o escritor resolveu fazer, de forma totalmente caseira, o longa-metragem Profissão MC (disponível no youtube). Como protagonista Criolo – na época, o desconhecido Criolo Doido.

“A gente vai mostrando cada vez mais que tem poder de fazer o que a gente sonha”, incentiva ele: “se você acreditar, consegue realizar”. A moçada bate palma e espera, admirada. O escritor oferece livros seus a dois adolescentes que recitassem um poema na frente de todos. Uma menina rima sobre a visita do escritor e é seguida por um garoto, que improvisa em cima do verso anterior. Alessandro agradece, todo orgulhoso da criatividade da periferia jovem. Finaliza: “Espero que tenha conseguido mostrar que eu estou onde estou porque lutei com muita dedicação e trabalho duro. E desculpe mais uma vez pelo atraso, foi o GPS”.

“Ah, achei que você ia dizer que era por causa do trem”, brinca a menina que acabara de rimar.

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