Da Oi ao MAM: como interesses empresariais limitam a arte

.

A censura às fotografias de Nan Goldin pela Oi, empresa cujas iniciativas culturais se beneficiam de isenção fiscal, traz à tona discussão sobre financimento da criação artística

Após a Fundação Oi Futuro haver desistido de expor o trabalho da fotógrafa estadunidense Nan Goldin, o Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro informou, no dia 28/11, que abrigará a exposição em fevereiro de 2012 no formato exato que fora definido pela curadora Ligia Canongia — e censurado pela empresa de telefonia. Serão, pois, 24 ampliações e vários slideshows: The Ballad of Sexual Dependency, Heart Beat, The Other Side e Empty Rooms, totalizando mais de 1.000 imagens.

Podemos, então, respirar aliviados: a arte venceu a batalha contra o moralismo dos interesses comerciais. Mas, será que venceu mesmo? A censura a certas imagens e, principalmente, o veto ao uso do espaço da Oi Futuro para a realização da exposição levantam dúvidas sobre qual o critério utilizado pela companhia telefônica na hora de definir quais são os tipos de expressão artística que passarão por seus centros culturais ou receberão seu patrocínio. Sendo Nan Goldin uma artista tão renomada quanto polêmica, com fotos de forte conteúdo sexual, cabe perguntar: Por que a Oi levou mais de um ano para decidir que o material era inadequado para seu público alvo?

O último edital de Artes Visuais da Oi tem 14 páginas com diretrizes para que os interessados possam enviar seus trabalhos. O projeto para a exposição das fotografias de Nan Goldin fora enviado por volta de setembro de 2010 e seguiu as exigências afixadas pela empresa. A Oi Futuro analisou o material apresentado, que inclui imagens, o currículo da artista e a proposta explicativa, que justificaria a importância desta exposição para os objetivos citados no edital — valorizar a diversidade artística, estimular a formação de novas plateias, incentivar o uso e a criação de novas linguagens.

A discussão sobre “o que é arte” é extensa, se não infinita, já que a arte muda com o tempo e com a trajetória das relações humanas e sociais. Há indícios de produção artística desde quando habitávamos cavernas. Há muito tempo as preferências estéticas carregam estreita relação com o poder político e econômico, e muitas das obras que marcaram profundamente a história da arte ocidental foram feitas sob encomenda. É o caso, por exemplo, do famoso quadro de Velásquez, Las Meninas, pintado dentro do Palácio Real para a família de Filipe IV, na Espanha.

A arte também está intimamente relacionada ao contexto social em que é produzida. Muitas vezes, dedica-se a temáticas que um determinado grupamento humano não está preparado para encarar. Foi o caso da tela que inaugurou o movimento impressionista na França. Manet pintou Olympia e o quadro foi exibido no Salão de Paris em 1865, juntamente com um quadro retratando Jesus Cristo, também de sua autoria. A camada social que tinha acesso ao Salão estava acostumada a pinturas envolvendo mulheres nuas — ainda assim, as pessoas ficaram chocadas.

Artigos e caricaturas foram publicados pela imprensa da época e o quadro foi rapidamente retirado da exposição. Manet, assustado com a repercussão negativa, chegou a declarar, numa carta ao escritor Baudelaire, que gostaria de jamais tê-lo pintado. Hoje em dia, sua obra é usada para explicar certos aspectos da cultura e o processo de desenvolvimento da burguesia francesa no século 19. A tela é também uma das maiores atrações do Museu D’Orsay, em Paris.

Pornografia, não

Mas, voltemos a Nan Goldin. O que ela fotografa? As fotos escancaram sem hipocrisia temas que são tabus em nossa sociedade atual: sexo, drogas, homossexualidade, dor, doenças, morte e nudez. Sobretudo, crianças — e o quanto elas podem ser expostas à realidade da vida dos adultos.

As fotos que motivaram a censura fazem parte do slideshow The Ballad of Sexual Dependency, uma sequência temática com cerca de 690 fotos que mostra, entre outras coisas, cenas de sexo explícito. E retrata também mulheres solitárias, crianças, amigos confraternizando, rindo, bebendo, gente usando drogas. Uma grande parte desse material foi produzido há 30 ou 40 anos. “O trabalho dela discute o amor, o sofrimento, a universalidade do drama humano”, explica Ligia, a curadora da exposição banida pela Oi e, agora, incorporada pelo MAM-RJ. “As imagens da Nan jamais podem ser confundidas com pornografia, pedofilia ou outras perversidades.”

Entre outros papéis, a arte cumpre a função de trazer uma série de questionamentos para dentro das galerias — e, posteriormente, para fora dela. Daí a importância que as pessoas tenham acesso ao que é produzido artisticamente. A arte que rompe parâmetros estabelecidos precisa de espaço dentro da sociedade para ser vista e discutida. Censurada, editada ou escondida, a arte não fará diferença alguma.

Para muita gente, ainda não estamos prontos para apreciar as fotos de Nan Goldin. Acham que nada educativo pode sair delas, que não podemos utilizá-las para ensejar determinadas discussões. “Eles não vão declarar jamais que é censura, estão tentando sair pela tangente de forma covarde. Um centro cultural não pode ser assim. Então abre uma creche.”, disse Ligia Canongia.

Alguns comentários no Blog Coletivo Outras Palavras defendem que a Oi não censurou as fotos. Mas censurar é simplesmente usar de algum tipo de poder para proibir a livre expressão. Claro que a Oi tinha o direito de não hospedar em seu espaço algo com que não esteja de acordo. Afinal, é uma empresa. Por outro lado, fica a pergunta: se, para participar de um edital, um artista visual precisa enviar as imagens de seu trabalho — e se essas imagens foram aprovadas e, depois, desaprovadas —, qual o critério utilizado pela Oi para selecionar os trabalhos? O currículo dos autores? O fato de alguém ter participado de milhares de outras exposições pelo mundo?

A Oi não tem o dever de contribuir para discussões polêmicas e tem o direito de escolher a quais imagens quer associar sua marca. Mas estava fazendo uso de um benefício fiscal para promover esta exposição. As empresas investem em cultura e, em troca, ganham um desconto no pagamento de imposto devido à União. Ou seja, o Estado paga, através de renúncia fiscal, e a marca da empresa aparece ligada à exposição, nas mídias que divulgam eventos artísticos.

Através da Lei Rouanet, o Estado brasileiro confere às empresas autoridade para escolher qual arte será financiada pelos cofres públicos. Quando entregamos para grandes corporações a decisão do que é arte e do que não é, do que será visto pelo público e do que não será, estamos entregando para estas empresas o direito de não nos deixar ver algo que talvez mudasse nossa forma de encarar a realidade.

Leia Também:

13 comentários para "Da Oi ao MAM: como interesses empresariais limitam a arte"

  1. Leonardo disse:

    Não existe censura neste caso; se o artista quer expor seu trabalho. que o faça sem ajuda da mamada do governo. Mas como é bom gritar “censura” agora todo mundo vai prestar atenção em você em nome da “liberdade”!
    Porém, desde quando depender do governo é liberdade?

  2. Eduarda Sena disse:

    Eu li o texto do blog sobre a exposição e me espanta que, nesta contemporaneidade, as limitações impostas às expressões artísticas estejam tão, assintosamente, declaradas. Isso, considero eu, fotógrafa amadora e apaixonada pela arte visual, uma completa ausência de sintononia com a realidade, com o ser e o estar no mundo e com a cultura.
    Eu concordo com a curadora da exposição quando ela diz que, se a Oi cria um Centro Cultural no qual a censura é pré-requisito para trazer a público as artes, melhor é fundar uma creche, mas, fico pensando, que tipo de creche seria ou no que aconteceria com as crianças que lá ficassem.
    LIBERDADE PARA TODAS AS FORMAS DE EXPRESSÃO!!!!!

  3. angelica disse:

    é só que a terminologia homossexual-ismo não é mais utilizada porque o sufixo -ismo- quer dizer doença, se diz homossexualidade.

  4. Oi Nino,
    Vejo de forma muito positiva a exposição que esta história teve. No fim, ajudou a criar uma discussão super interessante sobre a obra da Nan e atingiu bastante gente que, de outra forma, talvez nunca tivesse acesso aos trabalhos dela.
    Obrigada pela participação!
    Volte sempre!
    Abraço,
    Elaine

  5. Renata disse:

    caro ‘Kurukuru’, caso você, realmente, seja uma artista plástico (como anuncia), talvez seja a hora de rever o conceito de arte, de arte plástica e de cultura.
    Ok não concordar com o que você acabou de ler. Por enquanto estamos num país em que há um princípio de liberdade. Mas, deixar um comentário somente anunciando que você é alguém medíocre (antes de pular da cadeira, por gentileza, procure o dicionário) e sem nenhuma reflexão sobre o tema (censura ou não, arte ou não, privado ou público) é colaborar para que o mundo e as artes permaneçam numa inércia.

  6. Pingback: DESCONCERTOS
  7. Nino Carvalho disse:

    Parabens pelo conteudo, pela forma de escrever e pela contribuição social. Nao conhecia a fotografa e achei extremamente impactantes as imagens. Seu texto ajudou a passar toda emoção e, principalmente, uma revolta ou decepção com o tratamento da Oi. Uma pena mesmo.

  8. Ramó Alcântara disse:

    Zeca,
    No Brasil, quando um artista precisa de financiamento para sua produção ele vai até o governo. O governo dá algo como uma carta com o crédito para o investimento, mas esse crédito não pode ser usado diretamente pelo artista. Ele tem que procurar alguma empresa e apresentar sua produção (peça, ensaio fotográfico, o que seja), a empresa escolhe se ajuda ou não. Se ela ajudar, vai dar o dinheiro que é necessário e em troca ela não paga essa quantia em impostos (ou é a mesma quantia ou é mais, não tenho certeza).
    O problema é que empresa alguma quer associar sua marca com algo que nos faça refletir o mundo, porque todas elas estão inseridas em uma lógica que provoca grande parte dos problemas do mundo.
    Pagamos impostos, vivemos toda nossa vida trabalhando para o país e uma empresa escolhe a arte que vamos ver. O mundo de pernas pro ar.

  9. Kurukuru disse:

    Como artista plástico, arte é aquilo que me toca e me faz tirar idéias que me beneficiem de algum modo.
    Eu tive uma boa criação e boas influências, sempre gostei de estudar e faço apenas o que acho certo. Não passei por esse tipo de problema e odeio ver pessoas sofrendo por serem ignorantes – não falo sobre ser bem estudado ou não, me refiro a pensar qual caminho leva ao melhor futuro.
    Cada um escolhe como dar o próximo passo e se ela quer compartilhar suas experiências, ela deve fazer isso com quem quer escutá-la.
    Eu não acredito que perdi meu tempo lendo essa postagem, mas como eu li, tive que comentar.

  10. zeca disse:

    eu gostaria de me deter no seguinte parágrafo, acima:
    “A Oi não tem o dever de contribuir para discussões polêmicas e tem o direito de escolher a quais imagens quer associar sua marca. Mas estava fazendo uso de um benefício fiscal para promover esta exposição. As empresas investem em cultura e, em troca, ganham um desconto no pagamento de imposto devido à União. Ou seja, o Estado paga, através de renúncia fiscal, e a marca da empresa aparece ligada à exposição, nas mídias que divulgam eventos artísticos.”

  11. O Marketing veio como uma onda crescente, pegando uma a uma todos os tipos de arte. Até mesmo o grafitte que sempre foi considerada uma arte marginal hoje está em galerias patrocinadas.
    O problema é que os gestores de uma marca estão preocupados com lucros garantidos e não desejam arriscar sua imagem e se comprometerem com possíveis polêmicas que a verdadeira arte muitas vezes traz consigo.
    Infelizmente falta muita coragem nesse mercado, talvez por estarmos falando de dinheiro e reputação. Coisas que não combinam com o verdadeiro sentido da arte.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *