As estruturas elementares do Amor

Coluna “Mulher Alternativa” reestreia e provoca: e se o Amor, visto como o sentimento mais verdadeiro e inabalável, for essencialmente uma construção ideológica?

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Por Marilia Mosckhovicht | Imagem: Holly Roberts, Couple in Love (2006)

O ensaio “Marriage and Love”(Amor e Casamento), de Emma Goldman, publicado em 1902, começa com um questionamento da noção popular de que amor e casamento estão ligados. Essa noção aparece de duas maneiras: quando vemos o casamento como expressão máxima do amor (por exemplo nas ideias de que “casaram-se e foram felizes para sempre…”, ou de que a relação tem que chegar “em algum lugar” e esse lugar é invariavelmente o casamento); ou quando contamos, mais comumente em outros tempos, que mesmo pessoas em casamentos arranjados ou casais que tiveram momentos difíceis “aprenderam a amar um ao outro”. A militante anarquista e feminista segue o texto, e diz:

“Se por um lado é verdade que alguns casamentos são baseados em amor, e igualmente verdade que em alguns casos o amor continua na vida de casados, defendo que isso acontece apesar do casamento – e não por causa dele”

Mais de século depois, a noção contra a qual escreve Goldman parece ainda estar bastante presente no conjunto de ideias que rege instituições como o Casamento e Família no Brasil. Embora o processo jurídico de casar-se não mencione obviamente o amor e ressalte a condição óbvia de contrato de partilha de bens e direitos, o momento de assinar o contrato é permeado de uma série de conselhos e discursos da parte dos juízes – que podem legalmente suspender o casamento caso lhes pareça que a vontade dos noivos não é legítima. Mas o que justifica a vontade de casar-se, da forma mais legítima o possível, em nossa sociedade? O Amor – e não as necessidades práticas como incluir aquela pessoa num plano de saúde, ou obter um visto familiar para um outro país, etc. Tecnicamente um juiz poderia suspender um casamento agendado caso não acreditasse na motivação amorosa dos noivos, embora não pudesse legalmente justificar com essas palavras. Na forma popular de pensar a relação entre Amor e Casamento, qualquer outra motivação para casar que não Amor é chamada pejorativamente de “interesse”, e vista como não-legítima.

É até relativamente curioso observar como entre os séculos XIX e XXI essa ideia cresceu e se tornou dominante. Nas sociedades ditas ocidentais e suas colônias, como o Brasil, por muito tempo o casamento era apenas um contrato – mais uma forma de circular bens (no caso, a filha) entre famílias, se pensarmos numa perspectiva Lévi-Straussiana para brincar com o título do texto. O Amor como pensamos hoje tem uma longa história. Se, por um lado, já havia uma ideia de amor apaixonado em textos tão antigos quanto os de Luís de Camões e nas novelas de cavalaria, por outro lado foi apenas no século XIX que se consolidou, por assim dizer, a sua centralidade em nossa cultura. Nas novelas de cavalaria, o amor existia como algo a ser desejado, inatingível, impossível, mas naquela época parava por aí: o amor jamais poderia justificar e legitimar escolhas concretas na vida prática, sobretudo entre o público das novelas, a nobreza, que dispunha de bens e herança.

Hoje, dois séculos após o Romantismo, entendemos o Amor como um sentimento que tem primazia sobre todos os outros, que é visto como o mais desejado, mais verdadeiro, mais inabalável. Mesmo quando ele é abalado, recorremos à retórica teleológica para justificar, mantendo intacta a ideia de que ele é inabalável: dizemos que “não era amor de verdade”, “nunca me amou realmente”, “se me amasse não faria isso”. Esquecemos que a licença doentia que damos para o Amor pode ser muitas vezes a causa de tormentos que no plano do simbólico e do ideal não correspondem ao que deveria ser, para nós, o “Amor”. Numa importante tática política nos anos 1970 e 1980, as feministas brasileiras utilizavam o slogan “Quem ama não bate”, do qual derivamos uma série de discursos atuais sobre a violência doméstica no feminismo. Dizemos que “isso não é Amor”. No entanto, se observarmos a construção ideológica do Amor, e a centralidade e soberania do Amor para legitimar ações diversas, e se abandonarmos a tentação de acreditar em um Amor ideal e puro que não corresponde sempre ao que são de fato das práticas do Amor no cotidiano, veremos que o Amor envolve, sim, uma boa dose de violência.

A partir de leituras e estudos de sociologia, antropologia, psicanálise, história, literatura e outras disciplinas; a partir da vivência autorreflexiva e do compartilhamento de vivências com outras pessoas; a partir da desconfiança e de um olhar crítico para a maneira como vivemos o Amor, parece em ordem que no século XXI busquemos examinar a questão por um novo ângulo. Com prazer retorno ao Outras Palavras quinzenalmente trazendo essas novas reflexões. O Amor é um conjunto de ideias que orientam práticas sociais e organizam relações sexuais, afetivas, e até mesmo econômicas (junto ao Amor, aí, temos Família, Casamento, Monogamia…). Como diz uma amiga querida com razão, o Amor não é um sentimento.

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Um comentario para "As estruturas elementares do Amor"

  1. Marietto N. disse:

    O amor tem uma grande dose de violencia? esta é uma concepção cristã do amor, na qual ele e o ódio se parecem. Na realidade isto acontece porque é uma cultura cheia de ódio, que lo cria com seus valores e tenta de controlá-lo incutindo temor de Deus, leis, conselhos dos 10 mandamentos e outros. O amor, é feito de interesse pela coisa ou pessoa amada, desejo de acariciar, estar junto, tocar com delicadeza,vê-la bem, etc.. O ódio inspira vontade de destruição da coisa ou pessoa amada, matar, judiar, destruir socialmente ou no seu modo de ser, etc.. São coisas bem distintas. E´possível que tenham construções culturais pois têm pre-requisitos para acontecerem. Não se ama ou odeia algo ou alguém imotivadamente, mas de acordo com idéias, crenças, valores,interesses , etc., que nos levam a estes sentimentos. Pode ser que o amor e o ódio sejam forças necessárias para dar vida a uma serie de comportamentos sociais bons ou não, mas nem por isto são iguais. Seria muito importante as pessoas, sobretudo que produzem cultura começarem a distingui-los, coisa que me parece impossível em um mundo cristão. E mesmo aqueles que não se considerem tal, se confundem. Nas sociedades onde quase que prevalece a violencia em vários modos, não se pode dizer que as pessoas são naturalmente violentas, devido a assimilação, condicionamentos, aprendizado, da mesma.

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