Drogas na China: notável contradição

Maior produtor de maconha farmacêutica e de cânhamo do mundo, país recusa o uso recreativo da planta. Orgulha-se de sua política proibicionista. Conseguirá mantê-la, ignorando movimento pela liberação que cresce no Ocidente?

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Autor: Henrique Carneiro
Editora: Autonomia Literária
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A política de drogas na China hoje em dia se mostra paradoxal. Por um lado, o país se orgulha de ser o pioneiro na proibição do ópio e de outras drogas e de ter fundado o sistema internacional proibicionista a partir do primeiro acordo internacional ocorrido na Conferência do Ópio de Xangai, em 1909, depois formalizado no Tratado de Haia, de 1912. Por outro lado, a China é a maior produtora global de tabaco e de maconha industrial e farmacêutica e ambiciona ser a principal protagonista no mercado global dessa planta.

Entre 11 e 14 junho deste ano, a Universidade de Xangai sediou a primeira conferência na Ásia da Sociedade de História do Álcool e das Drogas (ADHS-Alcohol and Drugs History Society), do qual participei e as fontes para este artigo são edições da imprensa chinesa em língua inglesa desse período.

Na conferência da ADHS, o professor Zhi’liang Su, da Universidade Normal de Shanghai, reafirmou a narrativa do protagonismo chinês fundador no estabelecimento do sistema global de controle de narcóticos. Ao ser questionado se não seria um sinal de que esse proibicionismo repressivo não estaria funcionando o fato de ter sido reafirmado por governos os mais distintos desde o Império até a República Popular, reafirmou que considera exitoso o programa chinês de erradicação de certas drogas. Perguntado sobre o álcool e o tabaco, disse que o governo também busca diminuir o seu consumo e que, no futuro, dentro de mais um século talvez possa se estar comemorando também a erradicação das bebidas alcoólicas.

Hoje, no entanto, os chineses bebem álcool legalmente com muito prazer e são os maiores produtores e consumidores de cigarros do mundo, cujos maços não apresentam qualquer advertência dos males à saúde, embora a publicidade seja interditada.

A empresa estatal chinesa do tabaco, a China National Tobacco Corporation, produz 40% dos cigarros do mundo, com um faturamento de cerca de 170 bilhões de dólares que responde por cerca de 6% das receitas do governo chinês1. Embora a OMS atribua ao uso do tabaco cerca de um milhão de mortes anuais na China, o governo tem planos para aumentar a produção dessa empresa estatal2.

No que se refere às drogas ilícitas, segundo a imprensa em língua inglesa de Xangai, a polícia chinesa prendeu, entre 2013 e 2018, mais de um milhão de suspeitos e confiscou um total de 482 toneladas. 73 mil suspeitos foram presos por atividades em websites e cerca de mil destes foram fechados. Entre 2018 e maio de 2019, 139.084 indivíduos foram presos, o que representa 9,45% de todas as ordens de prisão. O número de processados criminalmente, de 164.494, embora um pouco maior do que o de detidos representa uma proporção menor de 7% do total dos processos no país3. No total de casos criminais no país, os dois primeiros são direção perigosa e roubo. Os crimes por drogas estão em terceiro lugar4.

Estes números oficiais estão em decréscimo em relação ao ano anterior. A China reconhece oficialmente em 2019 a existência de cerca de 2.4 milhões de usuários de drogas ilícitas, que teria caído 5.8% em relação ao ano anterior5. As drogas consumidas seriam nas seguintes proporções: 56,1% metanfetamina; 37% heroína; 2,6% ketamina, 1% maconha e 3,3% outras drogas6. Para o governo chinês, apenas 24 mil pessoas usam derivados de maconha no país, o que parece ser, certamente, subestimado.

Na capital Beijing, no entanto, as apreensões de drogas e prisões continuaram a crescer, mesmo que mais lentamente, com 37 mil usuários presos no último ano, 1,9% a mais que no ano anterior. A intensificação das prisões se deveria, segundo Tao Jing, diretor do órgão de segurança pública municipal, aos “métodos high-tech de detecção e à investigação na Internet”. Entre as novas drogas, ele menciona a “água feliz” (happy water), que conteria, em proporções não reveladas, metanfetamina, ketamina e ecstasy7. Isso parece ser uma confusão com outra droga do mesmo nome, que foi lançada legalmente sob a marca Shine Bee e que conteria a raiz polinésia kava, mas estaria ocultando um acréscimo com GHB e, por isso, foi proibida em 20178.

Mais de 85% das drogas ilegais na China viriam do “Triângulo Dourado”, entre o Laos, Myanmar e Tailândia. A droga mais usada é a metanfetamina, por cerca de 1.35 milhões. As apreensões nessa fronteira cresceram 17,6% no último ano, sendo que as de metanfetamina foram quatro vezes maiores e as de ketamina 35 vezes mais9.

Em 26 de junho se comemorou o Dia Internacional Contra o Abuso de Drogas e o Tráfico Ilícito. Na China, dois dias antes, a polícia de Xangai apreendeu 200 quilos de 5-MeO-DIPT, chamado de “foxy metoxy”, apresentado pela imprensa chinesa como “um análogo da metanfetamina”, que é, na verdade, uma triptamina psicodélica.

Foi através da venda on line que se identificou a venda e o fabricante artesanal do produto. Esse tipo de droga sintética constituiu mais de dois terços das apreensões de drogas em Xangai no último ano10. A internet e o serviço postal criaram uma nova rede de distribuição, mas que também permite ao Estado um meio de investigação e detecção.

No mesmo dia 26 de junho, o China Daily, publicou uma matéria de página inteira sob o título de Crackdown on narcotics, para fazer um balanço positivo da política antidrogas na China. A principal matéria saudava a realização de psicocirurgias, em pacientes voluntários, para inserção de chips no cérebro que estimulam certas áreas com microvolts para suprimir a dependência11. Se estes pacientes são voluntários, o mesmo não ocorre com 214.300 mil adictos recebendo “tratamento compulsório”, conforme os dados do Ministério da Justiça12.

Comparando com o Brasil, onde cerca de um terço da população carcerária é por causa de drogas ilícitas, o número oficial de presos e processados na China é até pequeno, mas a continuidade da recusa em aceitar usos recreacionais da maconha não só reafirma uma biopolítica coerciva como entra em contradição com as ambições comerciais no ramo global da Cannabis industrial e farmacêutica.

Ao mesmo tempo em que intensifica a repressão, especialmente aos opiáceos e drogas sintéticas e se opõe a qualquer tolerância ao uso recreacional da Cannabis, a China se vê diante do desafio de se tornar o maior global player do mercado legal dessa planta.

A China já é o maior produtor mundial de maconha industrial (hemp), um produto ancestral, onde justamente se encontrou o primeiro registro histórico do uso psicoativo dessa planta13. Nos últimos anos vem também se integrando ao boom econômico mundial da maconha industrial e medicinal com as suas plantações na província sulista de Yunnan e também no norte, em Heilongjiang, as duas únicas províncias em que se legalizou a plantação de cânhamo, fornecendo fibras têxteis e CBD para a indústria farmacêutica. Yang Ming, o principal cientista do programa de pesquisa sobre Cannabis do Instituto de Cultivos Industriais (Institute of Industrial Crops), na Academia de Ciências Agrícolas de Yuannan (Yunnan Academy of Agricultural Sciences), afirma ser muito maior o número de fazendeiros que plantam maconha, mesmo fora das duas províncias onde isso é legal14.

Tan Xin, presidente de uma das maiores empresas chinesas que propõe a produção comercial de maconha para uso farmacêutico, o Hanma Investment Group, afirmou que “a empresa tem uma parceria com o Exército de Libertação Popular para levar a tecnologia e o produto chinês para o mundo”. E, acrescentou ele, que “esperamos que esse ramo crescerá para ser uma indústria de 100 bilhões de yuans em cinco anos”15. Isso representa cerca de 15 bilhões de dólares. O interesse do exército ocorreu após a descoberta do potencial anti-bacteriano das vestimentas de cânhamo.

Essa empresa já tem escritórios nos EUA, Canadá, Israel, Japão e Europa e quer inseri-la no projeto chinês da “Belt and Road Initiative”, abrangendo toda a Ásia e outras regiões. Seu site anuncia que a empresa se opõe a “todas as formas de legalização do uso recreacional da maconha”, mas está “comprometida em promover a revolução industrial da biomassa, para substituir os minerais e se tornar o líder mundial da indústria do cânhamo”16.

Entre os múltiplos usos potenciais para os derivados da Cannabis, essa empresa anuncia o seu potencial terapêutico para a gripe, por exemplo. Para consumir maconha, no entanto, segundo esse modelo será preciso estar doente e fazê-lo na forma exclusiva de produtos farmacêuticos.

O maior país do mundo conseguirá conciliar uma política antidrogas de tal severidade que condena à morte traficantes de maconha e outras drogas e, ao mesmo tempo, impulsionar exclusivamente o mercado da maconha industrial e medicinal tanto no âmbito nacional como disputando o mercado global se, neste último, a tendência da legalização do uso recreacional, especialmente na América do Norte, já parece consolidada?

Tal impasse parece ser da mesma ordem que o dos dilemas mais gerais da sociedade chinesa em que ao programa das “quatro modernizações” de Deng Xiaoping, conforme a expressão famosa do dissidente Wei Jingsheng, em 1978, teria faltado a “quinta modernização”, ou seja, a democracia.

A ausência de liberdades inclui também a restrição severa ao uso de certas drogas. Como conciliar a pressão de um mercado consumidor que renova sempre sua demanda de produtos psicoativos, entre os quais, os canabinóides são dos mais apreciados em uma perspectiva histórica global, e a manutenção de uma ordem farmacocrática proibicionista e punitiva?

Poderá a China almejar uma hegemonia econômica global, inclusive no mercado do cânhamo industrial, e manter, ao mesmo tempo, a mesma severidade proibicionista à maconha recreacional?

O rigoroso proibicionismo chinês, já praticado em outros momentos no passado por governos tão distintos com o do imperador, o nacionalista, o comunista maoista e os reformadores pós-Deng, vem sendo repetidamente desafiado pela realidade de uma demanda social irreprimível pelos psicoativos.

No momento em que a guerra às drogas capitaneada pelos governos estadunidenses demonstra seu esgotamento e surgem propostas ocidentais de mudança de paradigma, a China estará diante da possibilidade de continuar sendo um polo do proibicionismo ou de questionar também os fundamentos da proibição de certas drogas, especialmente os derivados da Cannabis, da qual já é a maior produtora mundial.


1 Tom Hancock, “China Tobacco looks to take on global cigarette makers”, Financial Times, 03/04/2019, in: https://www.ft.com/content/6c820eb0-51fc-11e9-b401-8d9ef1626294

2 “Tabaco mata um milhão de chineses por ano”, Exame, 30/05/2011, in: https://exame.abril.com.br/mundo/tabaco-mata-1-milhao-de-chineses-por-ano/

3 Idem

4 “No let-up in China’s crusade against drug crime”, Shanghai Daily, 27/06/2019, p.7.

5 Idem

6 Zhou Wenting, Anti-drug trial bearing fruit, China Daily, 26/06/2019, p.4.

7 Xin Wen, “Police nab 37,000 in crackdown on drugs in Beijing”, China Daily, 24/06/2019, p.5.

8 “Popular beverage ‘Happy Water” banned by Chinas’ FDA as intoxicant”, in: https://www.ecns.cn/2017/10-05/276089.shtml

9 Zhang Yan, Drug dealers stepping up infiltration, official says, China Daily, 26/06/2019, p.1.

10 Xu Junqian, “Police arrest 8, seize 200 kg of ‘foxy methoxy’ drug”, China Daily, 25/06/2019, p.4.

11 Zhou Wenting, “Anti-drug trial bearing fruit”, China Daily, 26/06/2019, p.4.

12 Zhang Yi, “More than 210.000 addicts receiving treatment”, China Daily, 26/06/2019, p.4.

13 Andrew Lawler, “Oldest evidence of marijuana use discovered in 2500-year-old cemetery in peaks of western China”, Science, 12/06/2019, in: https://www.sciencemag.org/news/2019/06/oldest-evidence-marijuana-use-discovered-2500-year-old-cemetery-peaks-western-china

14 Stephen Chen, “Green gold: how China quietly grew into a Cannabis superpower”, South China Morning Post, 27/08/2017, in: https://www.scmp.com/news/china/society/article/2108347/green-gold-how-china-quietly-grew-cannabis-superpower

15 “said the company had partnered with the People’s Liberation Army to take the Chinese technology and product to the world”; “We expect the sector will grow into a 100 billion yuan industry for China in five years’ time”, Apud Stephen Chen, “Green gold: how China quietly grew into a Cannabis superpower”, South China Morning Post, 27/08/2017.

16 consultado em 22/07/2019: http://www.hmi.top/en/index

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