Um Brasil e duas planilhas de gastos públicos
Há uma cisão irracional. Cofres públicos são drenados pelo financismo: em um ano, país pagou quase R$ 1 trilhão em juros da dívida. Quando se trata da área social, vem o bombardeio midiático: “pauta bomba”, “irresponsabilidade fiscal”, “Brasil vai quebrar”…
Publicado 02/12/2025 às 18:39

A área econômica da Esplanada dos Ministérios sempre encheu a boca para se orgulhar de sua busca permanente pela austeridade fiscal. Desde antes da posse do terceiro mandato de Lula à frente da Presidência da República, o que se ouvia era o compromisso do futuro governo — que deveria marcar a ruptura com a direita e a extrema direita desde o golpe contra Dilma em 2016 — com a pauta ditada pelo financismo e pelos interesses da Faria Lima. Dentre tantos itens do conservadorismo econômico, ganhava destaque o engajamento com o objetivo de gerar recursos orçamentários para o pagamento de juros da dívida pública. Assim, de acordo com os cânones do manual do neoliberalismo internacional preconizado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), tal procedimento implicava a geração de superávit primário nas contas públicas.
O próprio Lula emitia declarações ambíguas a esse respeito. Ao mesmo tempo em que prometia fazer mais e melhor do que nos dois primeiros mandatos, ele dizia antes das eleições de 2022 que:
(…) “ninguém neste mundo demonstrou mais responsabilidade fiscal do que nós. O Brasil foi o único país do G20 que fez superávit primário durante os mandatos meu e da Dilma. Único do mundo” (…) [GN]
Ora, não há razão alguma para um governo que se pretende progressista, com um pé de alguma forma ainda fincado no campo da esquerda, se vangloriar de ter realizado tanto superávit primário. E o pior de tudo é ainda considerar como virtude de orientação de programa governamental continuar desenvolvendo uma política econômica de inspiração neoliberal, ancorada na austeridade fiscal e no arrocho monetário. A título de exemplo, apenas durante os dois primeiros mandatos de Lula, o governo federal realizou uma despesa de R$ 2,6 trilhões para o pagamento de juros da dívida pública. Isso representou uma média de 4,5% do PIB com esse tipo de despesa orçamentária entre 2003 e 2010. Na verdade, esse tipo de dispêndio é a contrapartida do esforço para realizar superávit primário.
Recorde de despesa com juros! Nunca antes da História deste país
Mas o dramático é que o processo foi ainda mais agravado com o retorno de Lula ao Palácio do Planalto em 2023. O processo de comprometimento de recursos públicos com a esfera financeira foi aprofundado. De acordo com o mais recente Boletim de Estatísticas Fiscais do Banco Central (BC), a situação nunca esteve tão ruim. Como costuma afirmar o presidente, “nunca antes na História deste país” o setor público gastou tanto com uma despesa tão parasita e regressiva quanto no mês de outubro. De acordo com as informações exibidas no documento, naquele mês foram dispendidos R$ 114 bilhões com o pagamento de juros da dívida pública. Este foi o maior valor mensal da série histórica apurada pelo órgão.
Este volume representou uma média de R$ 5 bi por cada um dos 23 dias úteis do mês. Uma loucura! Tanto mais impressionante se levarmos em conta o discurso do secretário-executivo do Ministério da Fazenda e dos órgãos da grande imprensa de forma geral quando o Senado Federal aprovou recentemente uma medida justa e necessária de regulamentar a aposentadoria especial para os agentes de saúde. A narrativa que se tentava impor era de uma “pauta bomba”, “irresponsabilidade fiscal” e por aí vai. Já o número dois de Fernando Haddad, Dario Durigan, saiu-se com bravatas e ameaças à decisão do legislativo.
(…) “Esse texto tem um impacto muito grande para os cofres públicos. É muito ruim do ponto de vista fiscal e não deveria avançar” (…)
Assim, mais uma vez o ex-funcionário de uma das maiores empresas de big tech do mundo, a Meta (proprietária do WhatsApp), reverbera o pensamento conservador na condição de titular em exercício da pasta, uma vez que Haddad se encontrava em viagem ao exterior. Para ele, pouco importa se a determinação de conceder a aposentadoria especial a tais categorias já tenha sido estabelecida na própria Constituição. Ou seja, o Projeto de Lei Complementar PLP 185/2024 votado apenas regulamentava tal previsão. Além disso, não cabe na visão do economista de planilha a hipótese de que o projeto possa ser muito bom do ponto de vista de política social. Não! O único que importa para o olhar do financismo é a sua consequência fiscal. E ponto final.
Pauta bomba são os juros!
Algumas avaliações catastrofistas estimavam o impacto da assim chamada “pauta bomba” como sendo de R$ 24 bi em 10 anos. Assim, teríamos um acréscimo de despesa orçamentária de R$ 2,4 bi a cada exercício por tal concessão às categorias que tanto ajudaram para impedir que os números da catástrofe da pandemia fossem ainda mais negativos. Não bastaram as 700 mil mortes provocadas em grande medida pela atitude criminosa de Bolsonaro, com seu combo de negacionismo e incompetência. Reconhecer a natureza de insalubridade e periculosidade das funções de tais categorias é uma medida de justiça social.
O fato concreto é que os números do alarmismo não resistem a uma análise mais detalhada. O valor diário da despesa com juros em outubro equivale a dois anos do impacto da aposentadoria especial. Mas sobre isso ninguém fala em “pauta bomba”, em “gastança irresponsável” ou ameaças de quebra do Estado brasileiro. Para esse pessoal da Faria Lima, gastar a maior parte do orçamento público com o andar de cima é promover respeito aos contratos e assegurar credibilidade à política econômica. Já, por outro lado, fazer política pública dirigida à maioria da população, sob qualquer hipótese, teria o significado de romper o pacto da responsabilidade fiscal e deveria ser denunciado a todo instante como populismo e demagogia. Triste país, governado por uma elite tão obtusa quanto espoliadora!
Além do recorde de valor mensal observado em outubro com as despesas financeiras para pagamento de juros da dívida pública, o mesmo Boletim do BC nos evidencia que estamos com outro valor máximo para a série histórica. Trata-se do acumulado dos últimos 12 meses para tal rubrica. Já alcançamos a marca de R$ 987 bi no período que vai de novembro de 2024 a outubro do presente ano. Além disso, houve um salto no que se refere à participação do volume pago de juros como proporção do PIB. Durante o primeiro biênio do terceiro mandato de Lula, o percentual subiu para uma média anual de 6,5%, um aumento de quase 50% em relação aos 4,5% do período 2003–2010. Caso a média do presente ano se mantenha, atingiremos 8,2% em dezembro. Ou seja, aqui está a verdadeira gastança irresponsável do orçamento público. Mas disso ninguém trata — nada de teto, limite ou contingenciamento nas despesas com juros.
Que austeridade fiscal é essa?
Assim, o que sobra da verborreia conservadora é que a narrativa da responsabilidade fiscal não se sustenta. O governo vem acumulando um déficit nominal anual superior a R$ 1 trilhão há um bom tempo. No entanto, a estratégia malandra de se prender apenas ao conceito de “primário” faz com que as despesas orçamentárias ditas financeiras não entrem no cálculo. Ora, que austeridade fiscal é essa? Mas que responsabilidade fiscal é essa? A retórica de defesa dos interesses do financismo bate no peito com orgulho quando se trata de ter a suposta “coragem” de cortar gastos em saúde, em assistência social, em educação, em previdência social, em segurança pública, em salários de servidores, dentre tantas outras rubricas.
Mas é necessário recolocar o debate em seus termos. Afinal, as despesas com o pagamento de juros são tão orçamentárias quanto aquelas que se destinam ao pagamento do Benefício de Prestação Continuada (BPC). Os dispêndios financeiros são tão orçamentários quanto aqueles realizados com o pagamento das obrigações do Sistema Único de Saúde (SUS). Os gastos classificados como não-primários são tão orçamentários quanto aqueles que recebem o carimbo burocrático de primários. Tudo é uma questão de estabelecer prioridades. O governo elege o rigor com os gastos sociais para demonstrar seu compromisso com uma suposta “seriedade” no trato da coisa pública. Mas deixa correr solto o volume mastodôntico com juros. E o pior é que faz esse malabarismo retórico carregado de desonestidade política e intelectual.
É preciso dizer alto e em bom som: não! O Brasil não está em equilíbrio fiscal, como pretende nos convencer o discurso oficialista. Estamos com déficit nominal superior a um trilhão de reais. E nem por isso o país vai quebrar ou estamos entrando na antessala do apocalipse. Apresentar esse tipo de resultado nas contas públicas não é tão problemático quanto nos faz crer o financismo de plantão. O que precisa ser revisto urgentemente é o foco enviesado em cortar, cortar e cortar apenas nas rubricas sociais e de investimento.
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