Sob o signo da meada

Como o poder das elites matou Tiradentes duas vezes. Por que sua figura sobrevive e provoca (Por Theotonio de Paiva)

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Por Theotonio de Paiva*

A figura de Tiradentes carece de ser analisada sob um duplo aspecto simbólico. Primeiramente vale notar o seu significado de luta pertencente a uma determinada esfera política expressa sobremaneira na Conjuração Mineira. Ali reside o seu eixo central, pautado pela observância de uma compreensão de mundo, ancorada fortemente nos ideais iluministas e, consequentemente, numa decisão de se ver livre do jugo autocrático da coroa portuguesa. A partir do problema lançado pela derrama, criavam-se assim as condições de se pensar num projeto de nação.

No entanto, aquele mesmo projeto que o alferes terminaria por simbolizar estaria carregado de algumas contradições terríveis. Uma condição primeira se evidenciaria, em parte, numa motivação ingênua, distante das condições minimamente exequíveis de um empreendimento daquela ordem. Sabemos que a pulsão estabelecida pelo sonho não irá respeitar os limites impostos pelas adversidades. De qualquer maneira, havia um fosso descomunal entre o sentido proposto por aqueles ideais, que bem poderiam ser vistos como revolucionários, e as condições políticas materiais de sua execução.

Além do mais, a tragédia anunciada daquele sujeito que mais claramente estaria identificado à questão da libertação de um Brasil colonial, ganharia algumas condicionantes de profundas implicações. Na sua desmedida, iria “trabalhar para todos”. Mas o que lhe aconteceria pelos séculos sangraria de um sentido muito acima daquele vaticínio lançado, no qual assinalava de que “havia de armar uma meada tal, que em dez, vinte ou cem anos se não havia de desembaraçar”.

A distância de interesses entre os demais participantes, enfeixados numa elite intelectual e econômica, e o desbaratamento de Tiradentes em uma ação compulsiva, se revelaria, na leitura dos autos da devassa, como um préstito de natureza aparentemente insondável. Ao imputar para si a responsabilidade do movimento, o alferes abrevia a farsa montada pelo poder despótico. É nela em que se irá evidenciar aquela expressão simbólica.

Ao terem os demais a pena comutada, Joaquim José encarnaria a imagem trágica do bode expiatório naquele corredor da morte que o levaria da prisão até o cadafalso, no Largo do Rossio. As janelas das casas comungariam com a coroa portuguesa a encenação montada para servir de exemplo às gerações futuras. A casa demolida, o terreno salgado, o corpo esquartejado pelos cantos, a descendência excomungada, entoariam cânticos de louvor ao arbítrio, além de servirem pedagogicamente, na sua dimensão catártica, de um freio exemplar a qualquer rebeldia tresloucada contra o poder maior.

No entanto, a imagem de Tiradentes não ficaria reduzida apenas àquela emblemática ação do jugo português. Nela caberia uma construção igualmente perversa, nascida que fora nos intestinos de um outro poder autoritário, que se pretendia moderno, revolucionário. De fato, guardaria como uma das suas principais obras igualmente a expressão de uma ausência de liberdade. Ao plasmar a figura de Tiradentes ao mito cristão, com a barba longa enfeixando a túnica branca e a corda ao pescoço, o Estado Novo corrobora na criação de uma simbologia da reverência. Ao divinizá-lo, retoma para si aqueles procedimentos medievais adotados pela Igreja Católica e pelo Estado português: fazer coincidir mitos que escapavam ao seu controle a uma imagem cristã. Como sabemos, ao se apropriarem daquelas divindades pagãs, reinventavam uma feição marcadamente conservadora para as suas crenças. No caso da ditadura Vargas, se enalteceria o sacrifício, a dor, o sofrimento pungente. Afastava-se com extrema sabedoria da força que poderia ser testemunhada numa outra narrativa simbólica, cujo pendor claramente se identificava com a expressão dos oprimidos.

Mas curiosa é a história dos homens. Ao vislumbrar a possibilidade de se ater às fabulações futuras e amarrar o país a um projeto que escancarava os desmandos da coroa portuguesa e as velhacarias do poder republicano, solidamente constituído pela força, a figura de Tiradentes se prestaria a símbolo de uma condição diversa, muito mais vigorosa e de forte impacto nos corações e mentes. Em sua condição de um elemento visivelmente provocador poderia nos ajudar a compreender as diversas intenções apostas quando o povo se mobiliza a mudar o seu destino e as instâncias o enganam e o atemorizam a permanecer omisso.

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* Theotonio de Paiva é dramaturgo e diretor de teatro. Doutor em Teoria Literária pela UFRJ. Recebeu Menção Honrosa nos Prêmios Literários da Cidade do Recife 2002, pelo trabalho sobre o teatro de Ariano Suassuna. Escreveu, em parceria com Paulo Afonso Grisolli, Luiz Carlos Maciel e Armênio Graça Fº, Tamen – A Inconfidência. Prêmio Mambembe, por Nicolau Grande & Nicolau Pequeno. Encenou O Romance do Pavão Misterioso, de José Camelo. Publicou Da desutilidade poética: um estudo acerca do Livro sobre nada, pela Revista Tempo Brasileiro. Atualmente trabalha como professor recém-doutor no Depto. de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da UFRJ. Mantém o blog Caderno ENSAiOS.

A imagem é uma seção de Tiradentes, de Cândido Portinari. O painel (3,09 x 17,67m) está no Memorial da América Latina

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3 comentários para "Sob o signo da meada"

  1. Vitor Menezes disse:

    Prezado amigo Theotonio, o que dizer? Não o conhecesse e diria: Bravo! Mas, conhecendo-o, direi: Bravíssimo!

  2. Ricardo Rigel disse:

    Texto brilhante, saio de casa com uma visão diferente sobre tudo aquilo que já li e escutei a respeito de Tiradentes.

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