Medicina: há humanidade além da clínica?

Livro revela os brasis encontrados pelos doutores do Mais Médicos em nove localidades do país — de comunidades indígenas a periferias de grandes cidades

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Livro revela os brasis, as brasilidades e os brasileiros encontrados pelos doutores do Programa Mais Médicos em nove localidades do país — de comunidades indígenas a periferias de grandes cidades

Por Antonio Lino | Fotos: Araquém Alcântara

Trecho do livro Branco vivo, de Antonio Lino, com fotos de Araquém Alcântara

Lançamento: Sábado, 26/8, às 15h, no Ateliê do Bixiga

Rua Conselheiro Ramalho, 945, Bixiga, São Paulo

Com entrada franca e bate-papo com os autores

Fazia três meses que o médico cubano não visitava a comunidade. Um surto de dengue e chikungunya tem mantido o posto de saúde cheio, e sua equipe atulhada de trabalho, presa aos plantões em Santa Rosa do Ermírio. Causadas por vírus caroneiros de mosquitos, as duas doenças ganham ainda mais força de proliferar com a severa estiagem que acomete a região: por conta da seca, o povo estoca o de-beber em vasilhas, potes e cisternas, criando assim o ninho perfeito (água parada, morna e limpa) para as larvas do Aedes aegypti, o hospedeiro zumbidor. É a situação na Serra da Guia: durante as consultas, dr. Sael gasta boa parte do nanquim de sua fiel e viajada caneta tinteiro prescrevendo antitérmicos e analgésicos para aliviar nos quilombolas a febre alta e as dores no corpo, sintomáticas da epidemia.

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(Nota árida: Tabelado e paliativo, o remédio para a falta de chuvas custa trezentos reais. Trata-se de um caminhão-pipa, particular, que traz até a Serra da Guia, por encomenda, um pedaço do Velho Chico — rio ancião, cansado. E cada vez mais magro). Além de distribuir cartelas de comprimido aos pacientes atendidos pelo médico cubano, repetindo-lhes, didaticamente, a posologia registrada no receituário, entre outras tarefas, as enfermeiras cuidam também de vacinar as crianças, que chegam aos montes com suas mães. Um burburinho agudo logo cresce de volume, à espera das picadas da imunização. Com um orgulho incontido, Dona Zefa aponta para a multidãozinha aglomerada em seu quintal:

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“Branco Vivo” pode ser obtido por internet, na Editora Elefante:

— Ó os afilhado.

Em seguida, a matriarca da Guia pega pelo braço uma comadre das antigas e a conduz, a passos lentos, para se consultar com dr. Sael. Aos 104 anos, Dona Joana Valentina de Jesus chegou há oito dias de Santa Brígida para prestigiar a novena do Padre Cícero:

— Vim festear!

Mordaz, a quem lhe questione a lucidez, a senhora centenária desafia:

— Quer ver se eu tô caduca? Então me dê dinheiro aqui pra eu contar.

Parente de Alexandre (“Aquele bicho feio é primo carnal meu”), Dona Joana já subiu e desceu muito “pelas ladeira desesperada” da serra, pisando de pedra em pedra, equilibrando potes cheios d’água na cabeça, bem antes do advento das cisternas.

— Era seco, seco, meu irmão. Agora tá um manjar do céu.

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Hoje com a vista defasada (“O que vou fazer? Me conformo. É a idade”), Dona Joana foi testemunha ocular da derrocada do Cangaço no Sergipe. Acossado pelas tropas volantes do governo, o próprio Lampião tombou na Grota do Angico, em Poço Redondo, numa emboscada liderada pelo Tenente Bezerra. Súditos do Virgulino, dois irmãos de Dona Joana, conhecidos no vulgo por Quina-Quina e Ponto Fino, já haviam morrido na luta, meses antes do cangaceiro-mor.

— Era um tiroteio danado.

Para receber a visitante pródiga em memórias, trazida por Dona Zefa ao seu consultório improvisado, dr. Sael levanta detrás da mesa de plástico com os braços abertos:

— Oi, minha avó!

Enxugando os olhos com um lenço branco, Dona Joana reclama de um incômodo ardente, que a inunda de um choro inútil, desprovido de sentimento. O médico distende as pálpebras no rosto manchado de um século, completa a anamnese com algumas perguntas protocolares e, como conclusão do exame, recomenda à anciã uma compressa tópica, três vezes ao dia, combinada com um antialérgico. Em seguida, sem demais queixas específicas, Dona Joana se deixa apertar pelo aparelho de pressão. Ao esvaziar o torniquete, dr. Sael divulga o resultado:

— Doze por oito. Dona Zefa comemora:

— Tá rica!

Terminada a consulta, as duas comadres se enlaçam de novo no tête-à-tête e tomam o caminho de volta, até a casa da rezadeira:

— O médico tem muita experiência. Pela sabedoria dele, a inteligência… É uma pessoa que tem dado a vida a muita gente. Abaixo de Deus, né? A conversa dele é muito aproveitosa. Embora Dona Zefa reconheça e recomende, com frequência e entusiasmo, o trabalho do dr. Sael, ela própria nunca cumpriu a bateria de exames de rotina que o médico insiste em lhe prescrever:

— Repare: eu tô com cinquenta ano que tive uma febre. Eu não tenho o que o povo chama diabo de gripe. Eu chamo é catarro. É muito difícil. O que eu tenho é essa rouquiça. E uma dor aqui, no peito. Essa dor tem cinquenta e tantos ano comigo. Acho que essa é que vai me matar.

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No pacto entre a fé e a ciência há uma fronteira tácita, com um contorno impreciso, mas que tanto dr. Sael quanto Dona Zefa atentam em respeitar:

— Quando é coisa de médico já mando embora. Não quero que pessoa nenhuma sofra enganada porque eu enganei. Outras vez, já vem do médico pra mim. É controlado.

Vide, por exemplo, o caso de Alexandre. Com as carnes expostas em “chaga pura”, o marido de Dona Zefa foi desenganado pelos clínicos, que lhe atribuíram um irrefreável câncer no sangue. A rezadeira não admitiu os prognósticos e investiu sua estrela sobre o caso dito perdido. Meses depois, como atestariam novos exames, em virtude apenas do tratamento da esposa, a doença já não circulava mais nas veias de Alexandre.

— Curamo ele com leite de avelós e rapadura preta. A minha entidade passou pra ele.

Foi o mesmo com os dois nódulos malignos que Dona Zefa fez sumir do próprio pâncreas com beberagens à base de babosa, folhas de boa-noite e leite de amoreira. E assim também com a pernambucana que aos 41 anos, depois de mais de uma década gerando apenas frustrações com os mais variados tratamentos para sua infertilidade, resolveu se aconselhar com a renomada parteira: um porta-retrato pendurado na sala de Dona Zefa comprova os frutos do encontro — uma mãe com suas duas gêmeas. Ou então o velho decrépito que chegou sem conseguir engolir nada de manhã, pelo meio do dia já comeu alguma coisa no almoço com Alexandre e, à noite, de volta à sua casa, diz-se até que se assanhou para deitar com a esposa (“A doença dele era encosto perturbado”). Além do caso mais recente, do tal “aleijadinho”, que não andava e hoje sobe a Serra da Guia sozinho. Os inúmeros testemunhos variam numa escala que vai dos benefícios mais prosaicos, passando por curas comprovadas, até roçar o nível dos milagres. Com o trabalho espiritual avalizado por resultados carnais, a reputação de Dona Zefa atrai, toda semana, uma média de duzentas pessoas em busca de alguma benção. É gente da própria comunidade, junto com moradores de outros distritos de Poço Redondo, sergipanos de outras cidades, nordestinos de outros estados, brasileiros de outras regiões e até forasteiros de outros países. A lista de procedência dos visitantes é quilométrica:

— Não vou nem dizer. Que vai ocupar seu caderno todo. Para dar conta da demanda, ao mesmo tempo em que dr. Sael segue cumprindo seus atendimentos, Dona Zefa também veste um jaleco branco. E então me convida a entrar, junto com alguns de seus pacientes, num cômodo pequeno, contíguo à sua casa: é ali que funciona seu consultório de rezadeira.

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Um comentario para "Medicina: há humanidade além da clínica?"

  1. Marcelo disse:

    Excelente!

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