Impeachment ou Golpe? Narrativas e narradores

Em nenhum processo histórico há verdade absoluta. Mas falam em “impeachment” os mesmos que viram, em 1964, uma “retomada da democracia”

Em 1º de abril de 1964, tanques do exército ocupam, no Rio, a Avenida Presidente Vargas, diante da Central do Brasil

Em 1º de abril de 1964, tanques do exército ocupam, no Rio, a Avenida Presidente Vargas, diante da Central do Brasil

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Em nenhum processo histórico há verdade absoluta. Mas é impossível não atentar: falam em “impeachment” os mesmos que viram, em 1964, uma “retomada da democracia”

Por Robson Vilalba

Com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff algumas palavras ganharam a boca pública, como a palavra: “narrativa”, normalmente acompanhada da frase: narrativa do golpe. Ainda que repetida na televisão e em horário nobre a “narrativa”, como leitura da história, não tem recebido o seu devido apreço, mesmo que esta seja uma palavrinha já bem usada no campo das ciências humanas.

Dito de uma maneira muito simples, a leitura da história como narrativa presa pelos inúmeros lugares de fala e, consequentemente, inúmeras formas de perceber a história. Esse pensamento se apresenta em detrimento daquele que defende uma única verdade histórica, irrefutável. Contudo, para evitar um relativismo pelo relativismo, a leitura através da narrativa propõe outro ponto igualmente importante: se há diferentes narradores há também divergentes interesses de poder no ordenamento do passado, do presente e do futuro. E com isso os narradores elegem seus heróis, os algozes e as vítimas.

Voltemos à narrativa do golpe. Acrescentando apenas que, se existem narradores divergindo, existe também uma disputa de poder sendo travada entre eles. Chamaremos aqui aqueles que se opõem à narrativa do golpe como “narradores do impeachment”. Assim, teríamos uma disputa de poder entre os narradores do golpe e os narradores do impeachment, a pergunta seguinte é: quem são eles e o que narram?

Como narradores do impeachment teríamos os editoriais dos jornais brasileiros Estadão, Folha de São Paulo o grupo Globo. Pensadores como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi ou Merval Pereira. Artistas como Alexandre Frota, Susana Vieira e Victor Fasano. Instituições como a Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). São os personagens que narram o enfraquecimento político da presidente Dilma Rousseff, o envolvimento do seu partido em escândalos de corrupção e seu crime orçamentário que a beneficiou nas eleições de 2014.

Como narradores do golpe teríamos os editoriais e opiniões dos jornais estrangeiros como New York Times, The Guardian, Le Monde, The Intercept ou a TV Al Jazira. Intelectuais como Noam Chomsky, Jürgen Habermas, Vladimir Safatle ou Boaventura de Sousa Santos. Artistas como Gregorio Duvivier, Chico Buarque, Raduan Nassar e Marieta Severo. Instituições como a Central Única dos Trabalhadores (CUT), o Sindicato das Empregadas Domésticas e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, além, é claro, do Partido dos Trabalhadores (este não em unanimidade). Narram que houve um acordo entre políticos e juristas para estancar denúncias de corrupção e que o crime pela qual a presidenta é acusada teria sido cometido por, pelo menos, 15 líderes políticos em exercício e estes não estariam passando pelo mesmo processo de impedimento ou, nem mesmo, sendo penalizados pela infração.

Como disse Drummond: “Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.”

Coincide o fato de alguns dos narradores do impeachment serem os mesmo que narraram o episódio de 1º de Abril 1964 como “retomada da democracia”. Enquanto os narradores do golpe trataram o mesmo evento como “golpe militar”. Além disso, cada narrativa parece revelar uma parte da história enquanto omite outra. Isso diz muito do projeto de poder que defendem em seu ponto de vista da história. Para nós, que olhamos para quem está narrando a história, resta apenas escolher os narradores e o projeto de poder que defendem, lembrando que não há uma verdade irrefutável, mas narrativas da história. É importante sublinhar que esse debate não é tão simples assim e é necessário compreender como é tecida essa teia de disputa de poder.

A leitura da história pelo prisma da narrativa nos permite uma reflexão rica; no entanto, ela só se realiza plenamente quando consideramos seus narradores e, principalmente, seus interesses na disputa do poder. Uma narrativa sem narradores é um relativismo mal intencionado. Nada mais é que o nada discursando sobre coisa nenhuma.

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2 comentários para "Impeachment ou Golpe? Narrativas e narradores"

  1. Gostei muito do texto de Robson Vilalba…
    Propõe uma discussão importante e quero trazer algumas contribuições…
    Me interesso por essa questão das narrativas…
    E noto que pessoas de direita (vou usar esta ideia) usam a palavra narrativa no sentido de que é só narrativa, não é a verdade…
    Nós temos narrativas, eles têm a verdade…
    Um sentido semelhante ao que religiosos dão à palavra ideologia…
    Li um texto bastante claro, na web, no qual o autor afirmava que ideologia são apenas ideias, nada de concreto…
    Outro ponto…
    Robson cita jornais estrangeiros…
    Ao ler editoriais e matérias desses jornais imaginei o seguinte…
    As narrativas deles também têm a ver com o fato de não estarem sujeitos às leis e ao Judiciário do Brasil…
    O que é bom…
    Se não me engano, foi o NYT que afirmou que nosso Congresso é um circo, com seu próprio palhaço…
    Mais abaixo, apresento uma lista desses textos…
    Um ótimo livro sobre narrativas foi organizado por Foucault…
    Vários capítulos, escritos por diversos autores, sobre um caso de parricídio no séc. XIX…
    O que o livro discute?
    A partir de uma mesma narrativa, a do jovem que matou a mãe e os irmãos, e de depoimentos de testemunhas, foram construídas narrativas diferentes, por psiquiatras e por juristas…
    Cada um selecionou o que interessava à sua argumentação e deixou coisas de fora…
    Vemos que a psiquiatria buscava um lugar entre as ciências e isso é importante…
    Bem, já escrevi demais sobre o livro…
    Michel Foucault (coord.), “Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio do século XIX apresentado por Michel Foucault”, Rio de Janeiro, Graal, 1977
    https://ayrtonbecalle.files.wordpress.com/2015/07/foucault-m-eu-pierre-rivic3a8re-que-degolei-minha-mc3a3e-minh.pdf
    Uma jornalista brasileira tem discutido muito sobre narrativas…
    Eliane Brum, que escreve para o El País…
    Alguns exemplos que considero brilhantes…
    Neste primeiro artigo, vem a ideia das passeatas, dos protestos, como narrativas…
    As construções das narrativas… As escolhas…
    Que bonecos são escolhidos, que bonecos ficam de fora, por exemplo?
    O cenário… o percurso…
    “Na política, mesmo os crentes precisam ser ateus. O momento do Brasil, culminando com as manifestações de 13 de março, mostra os riscos de uma adesão pela fé: é preciso resistir pela razão”, Eliane Brum, El País, 14 de março de 2016
    http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/14/opinion/1457966204_346156.html
    Noutro artigo, Eliane Brum é precisa ao apresentar uma concepção de conhecimento…
    “[…] como se houvesse uma ordem ‘natural’ que dissesse respeito à ‘natureza’ das ‘coisas como as coisas são’ que precedesse a vida e a política […]. São os dogmas não religiosos que mesmo uma parte da imprensa laica reproduz.”
    “Tarifa não é dinheiro, é tempo”, Eliane Brum, El País, 18 de janeiro de 2016
    http://brasil.elpais.com/brasil/2016/01/18/opinion/1453123446_710592.html
    E o mais recente, sobre as narrativas em torno das Olimpíadas do Rio…
    “A merda é o ouro dos espertos Como a ‘Olimpíada da Superação’ é usada para forjar identidade, unidade e consenso no Brasil do impeachment”, Eliane Brum, El País, 29 de agosto de 2016
    http://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/29/opinion/1472475226_988894.html
    Aqui mesmo, no Outras Palavras, um outro ótimo texto sobre narrativas…
    De Berenice Bento…
    Tanto a biologia quanto a cultura podem ser usadas para discursos pela desigualdade…
    “Para examinar duas retóricas de poder”, Berenice Bento, Outras Palavras, 13 de abril de 2016
    https://outraspalavras.net/posts/para-examinar-duas-retoricas-de-poder/
    Hoje, postei no Google+ uma lista de artigos que li sobre o golpe de 2016, desde anos atrás…
    Textos de crítica ao golpe, de resistência, mas ainda alguns que, ao negarem o golpe acabam, ao meu ver, confirmando a interpretação de que é golpe… Ver artigos de Clóvis Rossi e Hélio Schwartsman…
    Na verdade, o primeiro texto que selecionei sobre o golpe é de 2003, de Contardo Calligaris…
    Editoriais e artigos de vários jornais e sites estrangeiros, citados por Robson Vilalba, estão na lista…
    Todos os artigos têm link…
    Também apresento dois filmes..
    Aqui o link para acessar minha lista…
    O GOLPE DE 2016 (em textos e imagens)
    https://plus.google.com/113115111361171010092/posts/F23bRscMLV3

  2. Genovan de Morais] disse:

    Muito oportuno o seu texto, Robson Vilalba, pois como você mesmo assinala, embora a questão da narrativa envolva maior complexidade, não pode fazê-lo em um espaço jornalístico, mesmo que analítico. Mas seu caráter sintético, claro e didático permite que problematizemos o lugar dos diferentes discursos, por exemplo com a ‘moçada’; na escola, entre outros, sobre este momento(?!) dramático da nossa história.

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