Gray pinta estranha relação entre EUA e imigrantes

Enevoado, noturno, melodramático apenas na aparência, “Era uma vez em Nova York” expõe promessas e desencantos do “american dream of life”

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Enevoado, noturno, melodramático apenas na aparência, “Era uma vez em Nova York” expõe promessas e desencantos do “american dream of life” 

Por José Geraldo Couto, no blog do IMS

Há quase cem anos, Charles Chaplin, ele próprio um estrangeiro nem sempre bem acolhido nos EUA, realizou um de seus curtas-metragens mais memoráveis, O imigrante (1917). De lá para cá, o tema da imigração – sobretudo da imigração pobre, ilegal ou clandestina – é reavivado de tempos em tempos no cinema norte-americano. O exemplo mais recente é o notável Era uma vez em Nova York, de James Gray, cujo título original, The immigrant, repete o de Chaplin.

Só que aqui a protagonista é uma mulher, a polonesa católica Ewa (Marion Cotillard), que chega de navio a Nova York em 1921 em companhia da irmã tuberculosa. Esta fica em quarentena na Ellis Island até que se cure ou seja deportada – ou então que alguém suborne os responsáveis por sua guarda.

É nessa espécie de limbo, ou de antessala da América, que se passa a ação do filme de Gray, com Ewa tentando literalmente se virar nas ruas perigosas de Nova York para resgatar a irmã – e a si própria – da ameaça de expulsão. O homem que a acolhe e ambiguamente a ajuda é o judeu Bruno Weiss (Joaquin Phoenix), misto de empresário teatral mambembe e cafetão.

Melodrama enganoso

A abordagem adotada pelo diretor é a de um enganoso melodrama social. Por que “enganoso”? Porque todo melodrama pressupõe certa dose de maniqueísmo, para facilitar a identificação e a participação afetiva (a “torcida”) do espectador, e aqui a todo momento há um ligeiro deslocamento de perspectiva, como a revelação de um fundo falso, a solapar os esboços de certeza formados na expectativa do público. A primeira aparência dos personagens sempre engana, revela-se com o tempo mais cheia de sombras e nuances do que se suspeitava a princípio.

E é exatamente de sombras que se trata em Era uma vez em Nova York, filme de ambientação noturna e enevoada, em que sempre parece que há algo importante que não se distingue bem, ou por estar fora do quadro, ou na escuridão, ou obstruído por alguma parede, cortina ou objeto em primeiro plano.

Esse jogo de encobrimento e revelação produz alguns dos momentos mais fortes do filme: uma facada que não se vê porque agressor e vítima são filmados demasiado de perto; um espancamento numa passagem subterrânea em que só vemos a dança das luzes das lanternas dos espancadores; o falso reconhecimento da irmã na plateia de um show de mágica.

Nesses detalhes o filme de Gray matiza sua estrutura ostensivamente anacrônica, de melodrama clássico, e renova continuamente seu interesse narrativo e estético. Há um plano muito inspirado, que descreverei vagamente para não entregar o enredo: por uma janela vemos duas personagens afastarem-se de bote, à noite, enquanto em primeiro plano o perfil de uma terceira pessoa as observa. Uma imagem que sublinha a ambiguidade de gênero do título original: afinal, é “a imigrante” ou “o imigrante”?

Expansão e atração

Não deixa de ser curioso notar uma certa dialética entre os filmes americanos que exaltam a ideia de expansão – para o Oeste, para os outros continentes (por meio da guerra), para o espaço sideral – e os que iluminam a própria formação contraditória dos EUA modernos por meio da imigração em massa – e aqui poderíamos incluir desde América América, de Elia Kazan, até o Scarface de Brian DePalma, passando por O Poderoso Chefão, de Coppola, e Era uma vez na América, de Sergio Leone. O movimento centrífugo e o centrípeto. Nestes últimos predomina sempre uma visão amarga, desencantada, o avesso do american dream. Com o filme de James Gray não é diferente.

Para não terminar de modo tão sombrio, aqui vai de brinde, na íntegra, o curta de Chaplin citado no início:

 

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