Opioides: como a dor enriqueceu a Big Pharma

Nos EUA, marketing de corporações, ciência falsa e médicos gananciosos impulsionaram uma epidemia de drogas sem precedentes. Novo livro expõe as práticas de gigantes da indústria, que usam a dissimulação em nome do lucro – e à custa da saúde de milhões

Créditos: McCombs School of Business

LANÇAMENTO
O Triunfo da Dúvida: dinheiro obscuro e a ciência da enganação
De David Michaels
5 de março às 18h
Local: Auditório Paula Souza da Faculdade de Saúde Pública da USP
Com transmissão online pelo YouTube de O Joio e O Trigo [assista aqui]
O autor fará participação à distância
Saiba mais ou compre aqui

Cigarro, petróleo, comida, medicamentos. Grandes indústrias que movem o mundo utilizam-se de práticas fraudulentas para semear a dúvida sobre o que promovem. É o que mostra o livro O Triunfo da Dúvida, de David Michaels, que será lançado essa semana pela Editora Elefante, nossa parceira editorial. O autor investiga a fundo, e com vasta comprovação, as ações de corporações gigantes em busca de limpar a própria imagem e maximizar os lucros – deixando um rastro de destruição na saúde das populações. 

No capítulo que publicamos abaixo, Michaels conta como a indústria farmacêutica impulsionou a epidemia de opioides nos Estados Unidos, a partir dos anos 1990 – e que hoje mata 300 estadunidenses por dia. Com o apoio de um uso ardiloso de pesquisas científicas, difundiu-se que opioides eram seguros e não viciantes. Médicos (comprados ou influenciados pelo marketing das empresas) passaram a receitar medicamentos poderosos para uma mera dor de dente ou torção de tornozelo. Trabalhadores lesionados voltavam a trabalhar após receber doses fortíssimas de remédios altamente viciantes – que destruíam suas vidas.

O estrago foi tão grande que é possível relacionar a ascensão da epidemia com o aumento no número de crianças órfãs entrando no sistema de adoção, comenta o autor, que trabalhava no governo e testemunhou a tragédia. Enquanto isso, donos de farmacêuticas milionários tornaram-se bilionários e a indústria concentrou um poder gigantesco. A leitura do capítulo abaixo ajuda a compreender como o problema se alastrou, em um país sem SUS e onde a propaganda de medicamentos é muito pouco regulada. Boa leitura!


Capítulo 6 – O uso de opioides

Diferentes culturas e países adotam diferentes abordagens para o fardo da dor física. Quase universalmente, os excruciantes efeitos físicos de doenças como câncer e anemia falciforme são tratados de forma agressiva com a prescrição de analgésicos. Nos Estados Unidos, esse tipo de tratamento tem sido amplamente adotado, e os mesmos medicamentos utilizados para dor crônica também são indicados para indivíduos que sofrem lesões musculoesqueléticas, que passam por tratamentos dentários e na recuperação pós-cirurgia.

Por que tantos médicos estadunidenses receitaram fortes opioides a tantos pacientes e em doses tão elevadas? Reconhece-se agora que a mudança na prática médica contribuiu para a epidemia de opioides, gerando trágicas consequências no presente e, inevitavelmente, no futuro. A dinâmica da epidemia está mudando, e a causa iminente da maioria das overdoses são a heroína e o fentanil vendidos no mercado clandestino. No entanto, muitos indivíduos foram sugados inicialmente para o ciclo dos opioides pela variedade de opções produzidas legalmente por alguns dos fabricantes farmacêuticos mais bem-sucedidos e lucrativos dos Estados Unidos — empresas cujo crescimento financeiro foi possível graças a um tipo particular de campanha científica para persuadir médicos.

Não estou sugerindo que essas empresas são as únicas responsáveis pela crise dos opioides. Notáveis fatores sociais e econômicos contribuem para essa complexa epidemia. A partir dos anos 1990, o aumento do uso de opioides para dor trouxe a muitos a redução do sofrimento, um alívio bem-vindo. Mas não há dúvida de que, se os opioides controlados não tivessem sido disponibilizados em quantidades praticamente ilimitadas, a epidemia não seria tão grande. Muitos indivíduos que morreram por overdose estariam vivos. Este capítulo se concentra nos fabricantes dessas drogas, porque essa epidemia está enraizada no abuso da ciência que eles praticam.

O cérebro humano tem um mecanismo notável para controlar a dor. Quando nos ferimos ou sentimos dor, nosso corpo produz os próprios opioides químicos, que se ligam a receptores no cérebro e nos nervos, reduzindo ou bloqueando a sensação dolorosa. Em muitos casos, esse mecanismo natural não é forte o suficiente para controlar o sofrimento, e, durante séculos, produtos feitos de ópio, e mais tarde de morfina derivada quimicamente, têm sido usados para trazer alívio. Esses medicamentos funcionam para muitas pessoas. Há um porém, é claro: suas propriedades causadoras de dependência são muito bem conhecidas e sempre foram motivo de preocupação.

Os opioides sintéticos, assim como os semissintéticos derivados de opioides naturais, foram desenvolvidos em laboratório pela primeira vez há um século. Eles chegaram a ter uso medicinal marginal a partir dos anos 1960 e depois foram amplamente utilizados nos anos 1990. Atualmente, dois dos mais conhecidos sintéticos são oxicodona, o principal ingrediente ativo do produto comercial OxyContin, e fentanil. Este último, um dos mais potentes opioides sintéticos, é cinquenta vezes mais forte do que a heroína. O termo “opioides” se refere, portanto, a uma ampla categoria de produtos naturais e sintéticos, que se ligam a receptores específicos no cérebro e bloqueiam a dor, enquanto também produzem, em um grau ou outro, uma euforia que, às vezes, pode ser avidamente desejada pelos usuários. Aqueles indivíduos que começam a procurar opioides sem outros objetivos, independentemente das consequências nocivas à própria vida, desenvolvem dependência.

A recente epidemia começa em 1995, quando a Purdue Pharma, uma empresa privada com sede em Stamford, Connecticut, introduziu o OxyContin, nome comercial de uma nova formulação de oxicodona. O novo produto apresentava uma dose muito maior do que as versões anteriores de analgésicos à base dessa substância, como Percocet e Percodan, e prometia alívio mais duradouro da dor (doze horas, em vez de apenas quatro). A fim de obter aprovação da Administração de Alimentos e Drogas (FDA) dos Estados Unidos para essa nova formulação, a Purdue Pharma convenceu a agência de que, embora o OxyContin fosse mais potente do que os medicamentos anteriores, o atributo “de ação mais longa” o tornaria menos propenso a causar dependência. A lógica era baseada na alegação de que uma liberação mais controlada de oxicodona tenderia a causar menos euforia e abstinência do que as fórmulas de ação curta. A FDA comprou esse argumento e permitiu que a empresa alegasse, no rótulo do produto, que a droga era menos viciante. A realidade logo provou o contrário, e os pacientes que se tornaram dependentes rapidamente perceberam que os comprimidos poderiam ser esmagados e depois inalados, ou mesmo injetados. Enquanto isso, o oficial médico da FDA responsável pela revisão foi contratado pela Purdue Pharma.[1]

A indústria farmacêutica, em particular a Purdue com a então recente aprovação pela FDA, se esforçou em convencer os médicos de que a dor era uma questão menosprezada e pouco tratada em nossa sociedade (o que provavelmente é verdade), que os novos analgésicos eram uma maneira segura de tratar a dor porque praticamente não viciavam (muito inverídico) e que não poderiam ser alvo fácil de uso abusivo (escandalosamente inverídico).

Como eles fizeram isso? O primeiro passo foi encontrar e utilizar material da literatura médica existente que serviria como cobertura para inventar um mundo inteiramente novo de “fatos” para mascarar as propriedades viciantes das drogas que eles estavam comercializando. No início dos anos 1990, havia muito poucas evidências do efeito viciante. As empresas encontraram alguns breves estudos (se é que se pode mesmo chamá-los de estudos) que pareciam dizer o necessário — que os opioides eram seguros e não viciantes —, e então anunciaram os resultados. Quando observamos esses “estudos”, podemos ver suas limitações de projeto e escopo, mas, naqueles primeiros anos de uso extensivo de opioides, pelo menos uma década antes do início da epidemia total, os números concretos ainda não estavam em evidência — dezenas de milhares de usuários tinham se tornado dependentes. A ingenuidade que reinava tornou um pouco mais fácil acreditar, ou fingir acreditar, na farsa.

Uma das principais frentes utilizadas pelas empresas farmacêuticas foi uma carta com cinco frases ao editor do New England Journal of Medicine, publicada em 1980. Ela trazia o título “Addiction Rare in Patients Treated with Narcotics” [Dependência rara em pacientes tratados com narcóticos].

Eis o texto completo:

Examinamos nossos arquivos atuais para determinar a incidência de dependência de narcóticos em 39.946 pacientes médicos hospitalizados que foram monitorados continuamente. Embora 11.882 pacientes tenham recebido pelo menos uma preparação narcótica, havia apenas quatro casos de dependência razoavelmente bem documentados em pacientes que não tinham histórico de dependência. O vício foi considerado maior em apenas um caso. As drogas implicadas eram: meperidina em dois pacientes; Percodan em um; e hidromorfona em outro. Concluímos que, apesar do amplo uso de drogas narcóticas em hospitais, o desenvolvimento de dependência é raro em pacientes médicos sem histórico de adição.[2]

Como carta (e não um documento oficial), ela nunca passou por uma revisão por pares. Em outras palavras, citar essa carta nos anos 1990 foi o equivalente a citar, hoje, um comentário de rede social. No entanto, ela se tornou uma pedra fundamental da promessa da campanha que a indústria moveria posteriormente, afirmando que os opioides têm baixo risco de dependência quando prescritos para dor crônica. A carta era certamente impressionante. A mensagem do título parecia definitiva; um de seus autores foi Hershel Jick, o respeitado diretor do Programa Colaborativo de Vigilância de Drogas de Boston, e foi publicada em uma das revistas médicas de maior prestígio do país, o que a fez ser referenciada cada vez mais vezes depois que a Purdue introduziu o OxyContin no mercado, quinze anos mais tarde.[3] Durante os 25 anos seguintes, ela seria citada centenas de vezes na literatura médica e completamente deturpada na imprensa popular, provavelmente com a ajuda das equipes de relações públicas da Big Pharma. Em 2001, a revista Time chegou a descrevê-la como um “estudo de referência”, assegurando aos leitores que qualquer preocupação com a dependência de opioides entre os pacientes era “basicamente injustificada”.[4] Por fim, em 2017, o editor da revista emitiu um aviso sem precedentes de que a “carta foi citada de maneira ‘exagerada e sem críticas’ como evidência de que a dependência é rara em terapias com opioides”. Mais tarde, Jick apontou que esse texto, por cujo uso indevido ele não era responsável, tinha muitas limitações, incluindo o fato de que tratava apenas do uso de opioides em ambientes de internação hospitalar e que não havia acompanhamento depois da alta dos pacientes.[5]

O episódio da carta de cinco frases do New England Journal of Medicine pode ser o mais flagrante exemplo de que a indústria engana médicos e reguladores, mas houve muitos outros casos em que o setor promoveu estudos de curto prazo entre pacientes utilizando opioides prescritos para dor, queimaduras, pós-cirurgia ou outro evento agudo. Os estudos eram frequentemente pagos pela indústria, escritos por médicos empregados no setor farmacêutico ou por ghostwriters contratados.[6] Raramente houve qualquer acompanhamento. É muito fácil argumentar que tais medicamentos não são viciantes quando se escolhe a dedo os estudos e depois se interpreta mal os resultados.

Foi até surpreendentemente fácil inventar um diagnóstico totalmente novo: a pseudoadição. A ideia era de que o desejo por opioides era de fato motivado pela dor ainda não aliviada, para a qual o paciente havia recebido inicialmente uma prescrição para opioides. O termo em si e a descrição inicial tiveram origem em um estudo descrevendo um (sim, um!) paciente. Apesar de não haver realmente provas concretas (ou mesmo superficiais) que apoiassem o conceito, ele decolou. Os fabricantes patrocinaram publicações sobre a “prescrição responsável de opioides”, informando aos médicos que os sinais de pseudoadição (em vez de verdadeira dependência) incluem solicitação de medicamentos pelo nome, comportamento exigente ou manipulador, consulta a mais de um médico para obter opioides e acumulação compulsiva.[7] E qual seria a melhor maneira de tratar a pseudoadição? Com mais opioides, é claro. Em 2015, uma revisão da literatura revelou um total de seis artigos questionando o conceito. Todos foram escritos por médicos que não foram pagos pelos fabricantes.[8] Esmagando essa produção bem-intencionada, surgiram centenas de artigos discutindo a pseudoadição sem qualquer tentativa de validar empiricamente o conceito. Não foi uma luta justa, e os resultados eram previsíveis. O trabalho falsário e bem remunerado subjugou a ciência séria.

Agora lembre-se da alegação fundamental em relação ao OxyContin: doze horas contínuas de alívio da dor é um cenário melhor do que as quatro horas dos concorrentes, e menos sedutor para usuários problemáticos que anseiam pelo impacto mais rápido oferecido pelas drogas mais antigas. Uma investigação do Los Angeles Times revelou que os próprios estudos da Purdue descobriram que os comprimidos de OxyContin liberam aproximadamente 40% dos ingredientes ativos de forma imediata; depois disso, a liberação é lenta. Como resultado, o efeito do medicamento se esgota em menos de doze horas para a maioria dos pacientes, deixando-os desesperados por mais. Para alguns, o efeito acaba em menos de seis horas. O resultado é um duplo golpe: a dor subjacente retorna, e o paciente entra em uma abstinência aguda do medicamento. A soma de tudo isso obriga o indivíduo a procurar por mais medicação, muitas vezes por uma dose maior. É claro que a Purdue estava ciente, mas continuou a vender o medicamento alegando sua eficácia por doze horas, impulsionando o uso e o vício — além dos lucros.[9]

Certos fabricantes desenvolveram novas formulações que supostamente tornavam os medicamentos menos suscetíveis ao uso indevido. Em 2012, por exemplo, a Endo Pharmaceuticals colocou no mercado o Opana er, que declarava ser “resistente ao esmagamento” em comparação com sua formulação original, o Opana, o que o impediria de ser inalado. A empresa não informou quais estudos — nunca publicados — mostraram que o novo produto não poderia ser triturado com um moedor de café, ou apenas mastigado para liberar a droga.

Com isso, as pílulas supostamente resistentes a esmagamento reconfiguraram o mercado: a injeção substituiu a inalação entre os usuários de Opana. Em 2015, uma catástrofe: um condado rural de Indiana que nunca havia tido mais de cinco novos casos de HIV por ano relatou mais de cem novos casos em menos de três meses, porque a doença se espalhou por meio de seringas compartilhadas para injeção de Opana er.[10] O surto foi finalmente interrompido quando, depois de muito atraso e súplica das autoridades de saúde pública, o então governador Mike Pence concordou com um programa de curto prazo de fornecimento de seringas, medida limitada ao condado onde ocorreu o surto.[11] Dois anos depois — e tarde demais —, a FDA finalmente ordenou que a Endo interrompesse totalmente a venda do medicamento reformulado, a primeira e única vez que a agência retirou do mercado um medicamento opioide para dor devido a preocupações de uso indevido e vício.[12]

As evidências são simplesmente avassaladoras: fabricantes de opioides suprimiram alguns estudos, deturparam e valorizaram outros, alegaram que suas drogas não eram viciantes nem levavam facilmente ao uso abusivo e afirmaram que a abordagem mais eficaz para lidar com a dor do paciente era aumentar continuamente a dose da substância. Mas não se preocupe! Essas drogas não são particularmente causadoras de dependência. Você não acredita em nós? Basta perguntar à nossa campanha de relações públicas. Como demonstraram outras indústrias, com origens no auge do tabaco, a campanha de incerteza e desinformação sobre os impactos nocivos de determinado produto precisa unir ciência questionável a uma ampla pressão de relações públicas multissetorial. A campanha em três frentes dos fabricantes de opioides, dirigida a reguladores, médicos e ao público, seguiu a fórmula bem estabelecida e aperfeiçoada ao longo das décadas pela Big Tobacco: desenvolver “ciência sólida” produzida com essa finalidade (ou seja, ciência paga para apresentar conclusões benéficas) e manipular intencionalmente a ciência existente; contratar “líderes de opinião” para promover os produtos; criar e aperfeiçoar grupos de fachada para defender a importância das vendas irrestritas.

No caso dos opioides, os fabricantes começaram com médicos especializados no gerenciamento de dor, que provavelmente acreditavam que a dor estava sendo mal administrada em nosso sistema de saúde e que os opioides deveriam ser usados mais amplamente para esse fim. As empresas então os contrataram como “influenciadores”: médicos que poderiam atrair a atenção de outros médicos — os que realmente fazem as prescrições — e avançar a narrativa da indústria em meio a círculos profissionais. Esses líderes de opinião foram muito bem pagos por seus serviços.

Mencionei o estudo que ajudou a pôr a bola em jogo sobre a pseudoadição — aquele com apenas um paciente estudado. Um dos autores daquele artigo inovador, o médico e dentista J. David Haddox, se tornou um dos palestrantes pagos pela Purdue Pharma antes de chegar, por fim, à vice-presidência de política de saúde da empresa. Outro grande influenciador foi Russell Portenoy, especialista em medicina da dor no Centro Médico Beth Israel, em Nova York. Portenoy tinha grande visibilidade na área, atuando como editor-chefe do Journal of Pain and Symptom Management e como editor da revista Pain. Ele e seu programa receberam milhões de dólares em financiamento dos fabricantes de opioides. O evangelho que pregava não se dirigia apenas a médicos, mas também ao público, e se concentrava em desestigmatizar o uso de opioides. Ao aparecer no Good Morning America [13] em 2010, Portenoy afirmou:

No tratamento da dor, o vício é claramente incomum. Se uma pessoa não tem histórico pessoal ou familiar de abuso de substâncias e não tem um distúrbio psiquiátrico muito grave, a maioria dos médicos pode se sentir muito segura de que essa pessoa não vai se tornar dependente.

Portenoy acabou se retratando em 2012, admitindo ao Wall Street Journal que ele “deu inúmeras palestras sobre dependência no final dos anos 1980 e 1990 que não eram verdadeiras”. Ele acrescentou: “Eu ensinei sobre gerenciamento da dor, especificamente sobre terapia com opioides de uma forma que reflete desinformação? Bem […], acho que sim”.[14]

Os fabricantes de medicamentos pagaram milhões de dólares a médicos que desempenhariam papel semelhante entre seus pares; além de pagamentos diretos, realizavam conferências em resorts de luxo e jantares sofisticados, onde podiam também promover seus produtos.[15] Centenas de médicos receberam pagamentos de seis dígitos, e milhares de outros receberam mais de 25 mil dólares cada.[16] Isso se somou à enorme e altamente motivada força de vendas (seiscentos representantes somente na Purdue) empregada para reuniões com médicos em seus consultórios. O sistema funcionou. Médicos prescreviam um número cada vez maior de comprimidos. As empresas farmacêuticas, o pessoal de vendas, os médicos que prescreviam além do necessário — todos ficaram muito ricos.

O outro componente-chave do esforço de marketing da indústria de opioides eram grupos com nomes que soavam como sociedades profissionais verdadeiras ou organizações de defesa dos pacientes. Muitas dessas organizações bem financiadas eram, na verdade, apenas ferramentas para promover as mentiras dos fabricantes. De acordo com a ação judicial de 2017 movida pelo então procurador-geral de Ohio, Mike DeWine, esses grupos criaram diretrizes e programas de tratamento que encorajaram o uso de opioides a longo prazo. Eles também fizeram o trabalho sujo pela indústria farmacêutica, “respondendo a artigos negativos, advogando contra mudanças regulatórias que limitariam a prescrição de opioides de acordo com as evidências científicas e promovendo a divulgação para populações de pacientes vulneráveis”. Com nome pomposo, a Fundação Estadunidense da Dor, por exemplo, produziu materiais educacionais para pacientes, repórteres e formuladores de políticas, promovendo os benefícios dos opioides para a dor crônica e minimizando o risco de dependência. Ela direcionou medicamentos contra dor para veteranos de guerra e realizou campanhas multimídia para informar pacientes sobre o “direito” ao tratamento da dor. A organização era tão singularmente dependente da indústria que, em 2012, quando a Comissão de Finanças do Senado iniciou uma investigação sobre as ligações entre ela e os fabricantes, a diretoria da fundação (que incluía o já mencionado Richard Portenoy e outros médicos proeminentes) prontamente dissolveu a organização.[17]

A FDA exige que a publicidade das empresas farmacêuticas seja verídica e que os rótulos sejam aprovados pela agência. Entretanto, a publicidade que não promove um nome ou marca específica de produto, mencionando apenas doenças, ou aquelas que mencionam apenas drogas (sem vincular as duas coisas), não são obrigadas a fornecer informações de advertência ou mesmo a refletir, de modo justo e ponderado, os riscos que as acompanham. A indústria de opioides tirou total proveito dessa lacuna. Os anúncios do Opana er, da Endo, por exemplo, incluíam esta declaração aprovada pela FDA: “Todos os pacientes tratados com opioides necessitam de monitoramento cuidadoso para sinais de abuso e dependência, uma vez que o uso de produtos analgésicos opioides acarreta o risco de dependência mesmo sob uso médico apropriado”. Em contrapartida, uma campanha da Endo promovendo os opioides em geral apenas declarava: “Pessoas que fazem uso de opioides de acordo com a prescrição em geral não se tornam dependentes”.

Algo totalmente legal.

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Ao considerar as origens e a história das campanhas de desinformação da indústria, o padrão ouro de eficiência foi projetado pela Hill & Knowlton, empresa global de relações públicas que trabalhou com as corporações de cigarro depois das revelações sobre câncer dos anos 1950.

A família Sackler, proprietária da Purdue Pharma, já estava engajada em relações públicas, publicidade e marketing de medicamentos muito antes de fabricar opioides. Eles eram brilhantes em publicidade. Aliás, a receita proveniente desse outro negócio lhes proporcionou o capital para comprar a Purdue Pharma. Só a campanha de relações públicas para o OxyContin, com um orçamento de duzentos milhões de dólares, foi, no que diz respeito a lucro, um dos maiores sucessos da história da sociedade contemporânea. Na época que adquiriram a Purdue, os Sacklers já eram multimilionários graças à publicidade e ao marketing; a droga os tornou bilionários. Poucos anos depois do lançamento do OxyContin, as vendas anuais atingiram um bilhão de dólares. Em 2010, tratava-se de uma droga de três bilhões de dólares, embora nunca tenha representado mais do que um pequeno percentual da parcela de prescrições de opioides.[18] Segundo a Forbes, os Sacklers são agora a 19ª família mais rica dos Estados Unidos, mais rica do que os Rockefellers. (A partir de 2015, caíram um pouco no ranking, por causa da campanha para limitar a dependência de opioides, que se tornou mais difundida e bem-sucedida.)[19] É claro que a riqueza gerada pelos opioides não se limita à Purdue e a seus interesses. Algumas das maiores empresas da Big Pharma, incluindo Johnson & Johnson (cuja subsidiária Janssen Pharmaceuticals vende opioides), Teva e Allergan, lucraram com o crescimento maciço das vendas dessas drogas.[20]

De um lado do caixa, lucros fenomenais; do outro, consequências trágicas. O preço pago não precisa ser resumido aqui, além do fato objetivo de que os opioides mataram dezenas de milhares e destruíram a vida de milhares mais, dizimaram famílias e comunidades inteiras e são responsáveis pela primeira queda na expectativa de vida nos Estados Unidos em mais de duas décadas. Os maiores assassinos são agora os ilícitos fentanil e heroína, substituindo os opioides fabricados legalmente e que ajudaram a lançar a epidemia. Nos Estados Unidos, overdoses envolvendo opioides mataram 42 mil pessoas em 2016. Esse número saltou para quase 48 mil pessoas em 2017, semelhante ao número anual de mortes por HIV no auge da epidemia.[21]

Em meus sete anos na Agência de Administração de Segurança e Saúde Ocupacional, vi de perto um componente da epidemia de opioides: a relação entre lesões no local de trabalho, dor e dependência. As histórias eram de partir o coração. Trabalhadores de minas de carvão e da construção civil que se machucam em serviço tomam analgésicos para voltar às atividades — e para voltar a receber seu pagamento. Foi triste, mas não surpreendente ver os altos índices de overdose nas regiões dos campos de carvão na Virgínia Ocidental e no Kentucky, sabendo que os mineiros fariam tudo o que estivesse ao seu alcance, inclusive a automedicação, para continuar trabalhando. As relações entre epidemia de opioides e acidentes de trabalho foram primeiro documentadas por Gary Franklin, diretor médico do Departamento Estadual de Trabalho e Indústrias de Washington, a agência que dirige o programa da Administração de Segurança e Saúde Ocupacional no estado. Os trabalhadores ficam ansiosos para retomar as atividades laborais, e os médicos que tratam desses feridos, especialmente quando são escolhidos pelo empregador, muitas vezes dispensam o pagamento de indenização por acidente. Franklin demonstrou que trabalhadores com lesões nas costas que receberam prescrições de opioides tinham maior probabilidade de se tornarem dependentes da droga e acabaram ficando incapacitados e sem trabalho por mais tempo. Ele documentou como o número de mortes por overdose da droga entre trabalhadores acidentados em Washington disparou pouco depois de se alterarem as diretrizes de tratamento, no final dos anos 1990, recomendando o uso livre de opioides.[22] Essas diretrizes foram fortemente influenciadas por médicos, incluindo Richard Portenoy, e por organizações como a Academia Estadunidense de Medicina da Dor, um dos grupos de liderança financiados pelos fabricantes de medicamentos. Foi a combinação perfeita: a necessidade a curto prazo de levar rapidamente os funcionários de volta ao trabalho, associada à falsa propaganda da indústria farmacêutica que negava a capacidade aditiva de tais drogas poderosas, resultando na dependência, incapacidade e subsequente morte por overdose de muitos trabalhadores acidentados.

Perdido em meio à justa atenção pública direcionada ao uso e ao mau uso de opioides está o enorme número de crianças que, na prática, ficam órfãs, seja porque seus pais morrem, seja porque perdem a capacidade de exercer efetivamente a parentalidade.[23] Antes de 2012, o número de crianças sob tutela do Estado estava caindo nacionalmente a cada ano; desde então, começou a aumentar, sobretudo nos estados onde é maior o número de overdoses.[24] Na Virgínia Ocidental, a taxa de crianças que entraram no sistema de adoção aumentou 42% de 2014 a 2018.[25] Durante a epidemia de aids, criei um modelo matemático para estimar o número de crianças que perderiam a mãe devido à doença (e, com ele, qual seria o orçamento necessário para amparar crianças órfãs), mas esse modelo não existe para os opioides.[26] Dado o grande número de jovens adultos morrendo de overdose, não tenho dúvida de que a quantidade de crianças que ficaram órfãs por causa da droga já está superando o número de órfãos causado pela aids.

Como revelou o jornalista Barry Meier no livro Pain Killer [Analgésicos], de 2003, documentos coletados pelo governo dos Estados Unidos no processo criminal contra a Purdue demonstram que executivos da empresa, incluindo membros da família Sackler, estavam recebendo inúmeros informes de mau uso da droga já em 1997, menos de dois anos depois de ter estreado no mercado (e depois nas ruas). Em 2003, sete anos após o lançamento do OxyContin, milhares de pacientes que afirmavam ter ficado dependentes do medicamento haviam movido ações judiciais contra o fabricante. Uma delas conseguiu um acordo em Nova York no valor de 75 milhões de dólares. Três anos depois, o Departamento de Justiça iniciou o primeiro processo criminal contra a Purdue, por meio do qual muitos dos documentos e relatórios disponíveis ao público vieram à tona. Isso aconteceu durante o governo George W. Bush, e a Purdue, em busca de um acordo, contratou uma equipe de advogados bem relacionados, incluindo Rudy Giuliani — ex-prefeito de Nova York e posteriormente candidato à presidência pelo Partido Republicano. Segundo Meier, mesmo antes das acusações criminais, funcionários de alto nível do Departamento de Justiça pressionaram os promotores a recuar e aceitar um acordo. A Purdue se declarou culpada da acusação de promover ilegalmente o OxyContin, em um esforço de iludir médicos e consumidores, alegando que a droga era menos viciante e menos sujeita a usos indevidos.[27]

Corporações não podem ir para a cadeia, mas os executivos podem. O acordo com o governo permitiu que três executivos (mas nenhum membro da família Sackler) se declarassem culpados por delitos e evitassem a prisão; a empresa e seus executivos também concordaram em pagar multas no total de 634 milhões de dólares. Parece muito, mas ainda é apenas uma pequena parte da receita que o OxyContin continua gerando. O acordo levou a algumas mudanças nos rótulos de advertência e nas políticas de marketing, mas os padrões de prescrição médica já estavam estabelecidos e muitos pacientes já haviam se tornado dependentes das drogas, portanto as mudanças tiveram apenas um impacto modesto nas vendas de opioides e no crescimento devastador da epidemia.

Alguns estados também entraram com ações contra a Purdue, e esses casos em geral foram resolvidos por quantias relativamente pequenas. Ainda mais importante, os arquivos em todos esses casos eram confidenciais, de modo que nenhuma parte externa poderia ter acesso aos documentos secretos descobertos durante os processos. Novos casos não puderam se desenvolver a partir de casos anteriores, e as mudanças nas políticas de controle de opioides que poderiam ter ajudado a conter a epidemia foram adiadas. O fracasso em encurralar efetivamente as empresas levou a novas estratégias legais para mudar de maneira significativa o comportamento dos fabricantes (seguindo o exemplo do tabaco, quando os estados processaram os fabricantes de cigarros pelos custos de fornecimento de assistência médica aos fumantes com câncer ou doenças pulmonares). Um número crescente de estados, condados, cidades, terras indígenas e sindicatos entraram com processos contra Purdue, Johnson & Johnson, Teva, Endo, Allergan e também contra empresas de distribuição de medicamentos, alegando que elas elevaram os custos de assistência médica e de serviços sociais assumidos pelos reclamantes. O processo foi iniciado por um grupo bipartidário de procuradores-gerais dos estados e se baseou em materiais coletados por meio de intimações investigativas e requisições de documentos. Como tais processos produziram mais documentos incriminatórios, membros da família Sackler e outros que serviram no conselho de administração da Purdue Pharma também foram processados.[28]

Os documentos apresentados pelos estados contêm uma acusação particularmente incriminatória das práticas de marketing da Purdue e dos demais fabricantes. Denúncias de Kentucky, Tennessee e Ohio, estados que foram muito atingidos pela epidemia, detalham como essas empresas cinicamente comercializaram seus produtos para maximizar lucros, ignorando o óbvio impacto catastrófico de seu trabalho. Elas descobriram o que precisavam alegar para reivindicar a aprovação da FDA e convencer os médicos a prescreverem seus medicamentos.

No outono de 2019, o sistema legal estava começando a capturar esses ultrajes. Em uma decisão histórica, a Johnson & Johnson foi desmascarada, e um juiz de Oklahoma considerou a empresa responsável por ajudar a alimentar a epidemia de opioides, recebendo uma multa de 465 milhões de dólares. Johnson & Johnson, Purdue Pharma e o restante da indústria agora reconhecem que terão de pagar algum preço pela venda de um produto que causou tamanha devastação em todo o país, e estão inevitavelmente se movimentando para fazer acordos nas muitas ações judiciais que enfrentam.

***

As vendas e prescrições de opioides têm caído desde 2012, mas as empresas ainda vendem muito mais analgésicos do que o necessário. O trabalho de Gary Franklin em Washington e de outros ajudou a reduzir a prescrição quase automática a trabalhadores lesionados com queixas de dor. Mas é difícil de superar a doutrinação bem-sucedida da categoria médica. Por exemplo, a maioria das pessoas não precisa de narcóticos para controlar a dor em um tornozelo torcido. No entanto, de 2011 a 2015, 25% dos pacientes com plano de saúde e que nunca haviam tomado opioides (ou seja, provavelmente não tinham prescrição para essas drogas) receberam indicação para o uso desses medicamentos após recorrerem ao pronto-socorro por causa de uma entorse no tornozelo.[29]

Houve algum progresso legislativo. Em outubro de 2014, a Agência Antidrogas dos Estados Unidos reforçou os controles da competência médica para prescrever medicamentos contendo hidrocodona, proibindo a repetição de prescrições. Em comparação com os doze meses anteriores, as prescrições de produtos com hidrocodona caíram 22%.[30] Mas a epidemia havia sido semeada antes dessa mudança de política; menos acesso a produtos legais resultou em mais uso de produtos ilegais, e a heroína e o fentanil ilícito são mais baratos do que as pílulas legais desviadas para o mercado clandestino.

Examinando as origens da epidemia, fica claro o que poderia ter sido feito para detê-la antes que se tornasse tão arraigada. Certamente a FDA poderia ter se recusado a concordar com a suposta segurança e eficiência dos opioides de ação prolongada manifesta nos rótulos desse medicamento sem nenhuma evidência científica. Pesquisadores acadêmicos poderiam ter se afastado do financiamento da indústria e denunciado a prática enganosa do uso de observações anedóticas apresentadas como estudos. Empresas como a Purdue deveriam ter soado o alarme sobre o uso impróprio da droga muito mais rapidamente, em vez de manter em segredo os indícios da crescente dependência.

A divulgação pública dos enormes pagamentos de valores especiais aos médicos pode ter tornado a opinião geral ao menos um pouco cética em relação às alegações de segurança e eficácia. (Os Estados Unidos fizeram algum progresso nessa área com a Lei de Cuidados Acessíveis, também conhecida como Obamacare, que exigia dos fabricantes de medicamentos a divulgação on-line dos pagamentos feitos a médicos e hospitais. Isso poderia ser alterado, ou interrompido, se a Lei de Cuidados Acessíveis fosse revogada ou substancialmente enfraquecida.)

Quando da publicação deste livro, o financiamento secreto de grupos de fachada permanece legal nos Estados Unidos. As corporações continuam bancando grupos que operam sob o pretexto de serem organizações de base, mas que, na verdade, são atores políticos mercenários, empregados para convencer legisladores, reguladores e o público de que existe verdadeiro apoio popular para o produto de uma indústria.

As provas do crime — documentos que nos dizem a verdade sobre o OxyContin e outras drogas, bem como a verdade sobre campanhas de marketing ultrajantes e enganosas — foram arrancadas dos fabricantes nas ações judiciais e nos processos federais contra a Purdue. No entanto, nos termos desses acordos, a corporação foi autorizada a manter os arquivos em sigilo, e nenhum dos documentos veio a público. Nós os temos agora, uma década depois, apenas porque os procuradores-gerais estaduais iniciaram uma nova rodada de processos. O medo dos danos à reputação é um poderoso motivador do bom comportamento; se tais documentos tivessem surgido antes ou durante a ação judicial, é provável que a Purdue, a Johnson & Johnson e outras empresas tivessem sido compelidas a interromper voluntariamente algumas de suas manobras de marketing e, como consequência, uma quantidade muito menor dessas pílulas letais teria sido vendida.

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