Mulheres contra Trump: e depois da grande marcha?

Podem ter sido 5 milhões em todo o mundo. Só em Washington, um milhão. Mas lá, como cá, não é fácil manter a unidade de múltiplas organizações e sensibilidades

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Por Katie Klabusich e Zach Roberts | Tradução: Inês Castilho

“Bem-vindo ao seu primeiro dia! Não arredaremos pé!”

“Esta é a cara da democracia!”

Ativistas dos direitos das mulheres dos Estados Unidos desceram até o parque National Mall, em Washington, no sábado, 21 de janeiro, numa demonstração de força e unidade, agitando cartazes e cantando em protesto contra a administração Donald Trump, que acabava de tomar posse.

Especialistas em calcular multidões estimam que estavam no parque, para a Marcha das Mulheres, pelo menos três vezes mais gente do que no dia anterior, para ouvir o presidente Trump tomar posse como presidente – e a estimativa conservadora de 470 mil pessoas, divulgada pelo The New York Times, não inclui aquelas que marcharam até a noite, espalhadas, fora do alcance das fotos aéreas. The Guardian estimou que a participação na marcha de Washington chegou a um milhão.

Mais de 500 grupos foram parceiros da organização nacional, cuja estimativa é de que as manifestações das sisters ao redor do mundo, da Antartida ao Zimbabwe, em 673 cidades, somaram outros 4.721.500 participantes.

Ao contrário de muitas marchas, a mobilização de sábado estava cheia de crianças pequenas com cartazes feitos à mão cantando “Meu corpo, minhas regras!” Uma mãe que tentava abrir caminho na multidão com suas três jovens filhas recebeu encorajamentos que expressam bem o espírito do dia: “Ocupe seu espaço! Mantenha os braços abertos. Não é porque você é pequena que não pode ocupar seu espaço.”

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Nova York, foto de Nicole Craine/The New York Times

Pela primeira vez, manifestantes se unem a feministas históricas

A Truthout conversou com algumas participantes, muitas das quais se manifestavam pela primeira vez na vida. Outras disseram que já haviam participado de protestos.

Camille Jackson veio da Pennsylvania ao encontro da mãe, Tammy Jackson, que viajou da Virginia até Washington para sua primeira manifestação. “Participei dos protestos do Black Lives Matter [As Vidas dos Negros Importam] por lá, onde estudo, e foi incrível, e esta é minha primeira marcha pelos direitos das mulheres”, disse Camille. “Estou aqui pelo futuro… A nova geração é superinclusiva e estou aqui para lutar por ela”, continuou, emocionando-se ao contar que é coordenadora de um programa para jovens numa organização sem fins lucrativos. Ela pretende levar a mensagem da marcha para sua cidade, por meio de “resistência, paz, amor, unidade e trabalho com todo mundo.”

Tammy também lutou contra as lágrimas ao contar porque estava ali. “Estou aqui porque sou uma mulher, apoio os direitos das mulheres e me oponho a praticamente tudo o que Donald Trump representa”, disse ela. “Quero lutar pelas mulheres. Quero lutar pelas minhas filhas e – lá vou eu às lágrimas. Como eu disse, tudo que Trump falou sobre os direitos das mulheres, violência sexual, aborto, que as mulheres deveriam ser punidas – simplesmente não concordo com nada.”

Tammy estava tocada pelas notícias de faixas desfraldadas em pontes por todo o mundo, dizendo “Construa pontes, não muros”. “Penso que essa é a hora de manter-se firme, de unir nossas vozes por essa causa e protestar pacificamente – protestar e manifestar-se em todo o mundo”, disse. “Estou muito feliz de ver que o mundo está protestando conosco… No Portal de Brandenburgo, em pontes e lugares pelo mundo. É maravilhoso, maravilhoso.”

Como sua filha, Tammy diz que pretende continuar na luta. “Penso que este ano nos mostrou que precisamos nos envolver localmente – em nosso governo local, no governo do estado e marchar juntas, como fizemos com Obama no início”, disse. “Precisamos de movimentos de base, ir de porta em porta, educar nosso povo – precisamos educar todo mundo sobre o que precisamos alcançar!”

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Chicago, foto de John J. Kim/The Chicago Tribune, via Associated Press

Thy Barsell, jovem não-binário residente em Virginia, viajou a Washington só para a Marcha. “Estive antes em manifestações políticas, durante a eleição”, disse. “Estou aqui hoje para mostrar meu apoio a todos os grupos marginalizados – mulheres, mulheres trans, pessoas trans, mulheres negras, imigrantes – todos que são oprimidos e considerados inferiores na nação sob a administração Trump.” Barsell falou da inspiração criada pela marcha. “Senti uma paixão por justiça social”, disse. “Pretendo me envolver mais com Planejamento Familiar na universidade, participar mais de protestos políticos.”

Mary Gomez, democrata de 68 anos de Indiana, disse que viajou para ir à marcha porque “sou mulher e sinto que nossa existência está ameaçada.” Ela riu ao ouvir a pergunta se aquele era seu primeiro protesto. “Ó céus, não, eu já estava aqui em 68… Ainda estamos protestando contra a mesma merda!”, disse à Truthout. “É muito encorajador vir aqui e ver todos os cartazes e toda essa esperança e otimismo.” Gomez está se agarrando a esse otimismo com as duas mãos porque, diz, “onde há vida, há esperança”.

Enquanto isso, Maggie, 23 anos, democrata de carteirinha “muito liberal” da Pensilvânia, disse à Truthout que a marcha é seu primeiro protesto. Estava lá para lutar por direitos humanos – saúde, em particular. “Me preocupa a revogação do sistema de saúde criado por Obama”, disse. “Acho que eles não sabem bem o que vai acontecer no futuro, e isso me dá medo.” Seus temores a levaram a escrever para seu senador sobre o indicado de Trump para procurador-geral, senador Jeff Sessions (Republicano do Alabama). “Sessions é o que mais me apavora”, disse. “Trabalho com seguro, com gente que recebe cobertura do Obamacare, que usa esse benefício. Estamos aqui para apoiar pessoas que têm medo do que pode acontecer. Faço o possível para ser uma cidadã ativa.”

Um processo de organização cheio de conflitos

Linda Sarsour, ativista palestino-americana cofundadora do MPower Change, tornou-se copresidente da Marcha das Mulheres de Washington e descreveu o processo que uniu milhares de pessoas e centenas de organizações para a “maior mobilização de massa que qualquer administração já viu em seu primeiro dia” como “conflituoso… por ”. Muitas das pessoas envolvidas nunca haviam se encontrado, e a pressão interna por maior intersecionalidade e inclusão colocou previsíveis pedras no caminho.

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Los Angeles, foto de Jae C. Hong/Associated Press

As primeiras críticas à marcha apontavam a ausência de mulheres negras na organização. Nos últimos dois meses, houve esforços para ampliar a diversidade das envolvidas nos bastidores e no palco do evento principal. “Como mulheres negras, entramos nessa não apenas para mobilizar e organizar, mas também para educar – argumentar que não podemos falar de direitos das mulheres, direitos reprodutivos, salários iguais, sem falar de raça e de classe!, disse Sarsour antes da marcha. “Não tem importância que algumas pessoas se ofendam. Temos esperança de que a conversa prospere e que a gente avance até um lugar diferente, tentando descobrir como podemos alcançar a unidade, apesar de tudo.”

A ativista e escritora Mock estava envolvida na redação do texto da plataforma política oficial da Marcha das Mulheres e fez, no sábado, uma das intervenções mais potentes, que inclui esta passagem:

Nossa visão de liberdade precisa ser idêntica, mas devemos ser intersecionais e inclusivas. Deve estender-se para além de nós mesmas. Sei com certeza absoluta que minha liberdade está diretamente ligada à liberdade da trans latina sem documentos que anseia por refúgio. À da estudante portadora de necessidades especiais que busca acessibilidade inequívoca. À da trabalhadora sexual que luta para fazer a vida em segurança.

Liberdade e solidariedade coletivas demandam um trabalho difícil; um trabalho em que lutamos juntas e lutamos umas com as outras. Não é porque somos oprimidas que não somos vítimas de ações inconscientes, do mesmo modo policialescas e vergonhosas. Precisamos nos voltar umas às outras com mais responsabilidade e comprometimento com esse trabalho. Ao estar aqui presentes, vocês estão se selando um compromisso com esse trabalho.

O fato de Mock incluir os direitos das trabalhadoras sexuais na plataforma e em sua fala é histórica. Há muito tempo as trabalhadoras sexuais têm sido ignoradas, estigmatizadas e frequentemente criminalizadas dentro do feminismo mainstream, e mulheres que ocupavam o palco principal, como a líder feminista Gloria Steinem, tiveram muita resistência à ideia de que “trabalho sexual é trabalho” e de que a descriminalização deveria ser um princípio para a ampliação do movimento. Mock disse à ativista Melissa Gira Grant, advogada dos direitos das trabalhadoras sexuais, que o fato de incluir na plataforma esse parágrafo, “manifestando nossa solidariedade com os movimentos pelos direitos das trabalhadoras sexuais”, “não era um problema para mim, porque como mulher trans negra, que cresceu em comunidades de baixa renda e que advoga, resiste, sonha e escreve ao lado dessas comunidades, sei que as economias clandestinas são parte essencial da realidade vivida pelas mulheres e outras pessoas. Sei que trabalho sexual é trabalho. Não preciso pisar em ovos para falar sobre isso.”

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São Francisco, foto de Jim Wilson/The New York Times

Outro ponto de conflito na liderança do evento foi a falta de oradoras pelos direitos dos portadores de necessidades especiais. A escritora e advogada por justiça aos portadores de necessidades especiais Emily Ladau publicou uma bomba contra os “Princípios de Unidade” da Marcha das Mulheres, cinco dias antes do evento. “A primeira vez que a expressão ‘necessidades especiais’ é mencionada, ela demonstra zero reconhecimento de que esta é uma questão de justiça social”, escreveu Ladau, referindo-se à breve menção a pessoas com necessidades especiais no contexto do trabalho de cuidadores, pago ou voluntário. E acrescentou: “Sabe o que significa, para mim, essa ter sido uma das duas únicas vezes que ‘necessidades especiais’ foi mencionada em toda toda a plataforma divulgada pela Marcha? Significa que minha existência, como  mulher com necessidades especiais, é um ‘fardo’. É ‘trabalho’ para uma outra pessoa.”

No dia seguinte, a conta oficial do Twitter da Marcha das Mulheres prometeu fazer mudanças: “Um grande texto de Emily Ladau sobre como necessidades especiais pode intersecionar com todas as questões de identidade. Imperdível! Gratas a Emily por nos pressionar!” Nada foi mencionado sobre a crítica de Ladau por não haver nenhuma mulher com necessidades especiais colaborando com a plataforma.

As escritoras e organizadoras Sonya Huber, Sarah Einstein e Andrea Scarpino, juntamente com outras colaboradoras, criaram o site da Marcha das Portadoras de Necessidades Especiais como forma de construir uma marcha online para aquelas e aqueles que não conseguiriam estar pessoalmente no National Mall em razão de alguma invalidez

Controvérsias sobre grupos contra o aborto

Surgiram debates também sobre a inclusão temporária de dois grupos anti-aborto – And Then There Were None e New Wave Feminists – na página parceira da marcha online, no decorrer da organização.

Lily Bolourian, uma feminista iraniano-americana que pertencia à organização do evento, estava entre as vozes mais fortes que pediam a remoção desses grupos anti-aborto da lista de parceiros. A resposta da marcha foi: “A organização anti-aborto em questão não é parceira da Marcha das Mulheres em Washington. Nós nos desculpamos por esse erro.”

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Filadélfia, foto de Jacqueline Larma/Associated Press

“Depois de remover silenciosamente o New Wave Feminists da página de parceiros por ser um tremendo retrocesso, a declaração que as organizadoras fizeram foi insatisfatória, para dizer o mínimo. Parceria com um grupo que liga Planejamento Familiar a Mengele [o ministro nazista conhecido por seus horrendos experimentos médicos em Auschwitz] é um ‘erro’ muito grande para ser cometido. As pessoas queriam uma explicação, e a mereciam, mas não a recebemos”, disse Bolourian à Truthout.

As frustrações de Bolourian se intensificaram quando ela voltou ao site para checar outros patrocinadores. “A marcha deixou claro que é simpática a pessoas e causas anti-aborto”, disse. “Como se não fosse suficiente adicionar And Then There Were None depois do retrocesso inicial, e depois removê-lo silenciosamente, elas aceitaram a parceria com Stanton Healthcare [um centro de ‘crise por gravidez’ também conhecido como clínica fake de direitos reprodutivos] – com o propósito expresso de minar e esvaziar o Planned Parenthood [Planejamento Familiar]. Esse não é o meu feminismo. Não, obrigada.” Stanton também foi removido da lista de parceiros, por causa das reações negativas.

Preocupações com apropriação e racismo

Bolourian foi uma entre as muitas mulheres que inicialmente estavam entusiasmadas sobre um evento que evocava a histórica Marcha sobre Washington e tinha esperanças de que as organizadoras fossem mulheres negras. Quando descobriu que o grupo inicial era composto principalmente de mulheres brancas, perdeu o interesse, certa de que tratava-se apenas de mais uma instância de apropriação.

Brittany Oliver, uma ativista pelos direitos das mulheres em Baltimore, denunciou a apropriação em seu site, em novembro: “No início a marcha era chamada ‘Um Milhão de Mulheres’, e logo depois de serem avisadas que estavam cooptando uma marcha liderada por mulheres negras em 1997, vocês decidiram mudar o nome para ‘Marcha sobre Washington’. Bem, esta foi outra manifestação liderada por negros, por direitos civis… A impressão é de que vocês cooptaram as mensagens desses dois momentos históricos muito importantes para a história dos negros e isso é lamentável, porque está se tornando muito difícil preservar o ativismo negro.” A certa altura as organizadoras se abriram e chamaram para a equipe jovens, mulheres negras e pessoas de diferentes gêneros e religiões.

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San Diego, foto de Chris Stone/Times of San Diego

Boularian disse que não estava dizendo a ninguém que não participasse, mas seu foco foi organizar as pessoas no local onde mora. “Quero usar minha energia para resistir aos fascistas protestando no dia da posse, e lá é onde as pessoas mais necessitam. Acho que esse é o melhor uso do meu tempo”, disse, ao olhar para além do final de semana. “Penso que a plataforma da Marcha das Mulheres é um bom começo, mas é incompleta. Queria ver mais trabalho emocional, sobre abortos gratuitos, ao invés de ‘baratos’, uma política externa anti-imperialista que proteja mulheres e meninas no estrangeiro, soberania indígena, assassinatos de mulheres trans. Há trabalho a ser feito.”

Participando na Marcha, apesar de tudo

Embora não faltassem críticas antes do evento, muitas mulheres decidiram aparecer, independentemente delas, para participar da massiva mobilização.

“Fui à marcha porque, como um monte de outras pessoas, estou apavorada com nossa nova administração e o estrago que vão fazer ao mundo”, disse a escritora feminista Aja Barber à Truthout. “Esse homem fez uma campanha em cima do medo e, quando alguém faz declarações grandiosas dizendo que vai registrar grupos de minorias, tendo a acreditar nelas!”

Barber encontrou na marcha muito do que esperava. “Tive a impressão de que a maioria das pessoas não entendeu que desconstruir a supremacia branca deveria estar no topo de suas listas, junto com impedir que Trump desrespeite seus direitos”, disse Barber. “Eu irei a outras manifestações, mas também vou pressionar ativistas e pessoas que dizem ser aliadas para fazer mais.”

Esperançosas, as muitas pessoas que participaram da marcha – inclusive as muitas crianças de todas as idades que lá estiveram – não apenas em Washington, mas em todo o país – também continuarão a aderir a futuras mobilizações políticas, criando mais oportunidades para manter a chama viva e também atuando mais.

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Boston, foto de John T. Lumacki/The Boston Globe, via Associated Press

Manter a chama viva

Se a energia gerada pela manifestação massiva de sábado será sustentável ou irá abastecer ações futuras de quem participava pela primeira vez, ainda é uma incógnita. A construção do movimento e manifestações por direitos humanos tiveram um boom nos últimos anos, então certamente há muitos caminhos para quem deseja envolver-se localmente. Há marchas de mulheres em todo o país, de grupos que lutam contra as mudanças climáticas, demandam salário igual, opõem-se a deportações e ao encarceramento em massa, advogam por saúde (inclusive saúde reprodutiva), lutam pelo salário mínimo, pressionam pelo fim da discriminação e violência racial, advogam pelos direitos dos indígenas.

A administração Donald Trump e Mike Pence promete infinitas oportunidades para protestos e para organizar a resistência – trabalho importante, quando o presidente parece não entender que ele não venceu pelo voto popular, que as pessoas que votaram contra ele têm direito à livre manifestação, e que a própria democracia se parece mais com a marcha das mulheres do que com essa eleição.

“Vi os protestos ontem, mas tinha a impressão de que acabamos de ter eleições! Por que essas pessoas não votaram? A mágoa de celebridades causa estragos”, disse ele no Twitter domingo de manhã.

Vamos descobrir nos dias e anos à nossa frente se a raiva causada por sua eleição e posse pode ser sustentada e aproveitada pra um trabalho de justiça social no longo prazo. A vida das pessoas e a liberdade das gerações futuras dependem disso.

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Um comentario para "Mulheres contra Trump: e depois da grande marcha?"

  1. C.Poivre disse:

    Deputada norte-americana vai à Síria e não vê “rebeldes moderados” só terroristas e insta o governo dos EUA a parar de apoiá-los. A deputada em questão era a mais cotada para vice da chapa do senador Bernie Sanders, caso fosse ele o candidato democrata às eleições presidenciais:
    https://blogdoalok.blogspot.com.br/2017/01/tulsi-gabbard-o-povo-sirio-quer.html

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