A Fiocruz pesquisa. O ministro fecha os olhos

Vasto levantamento sobre uso de drogas desfez preconceitos e desmentiu “epidemia de consumo”; Osmar Terra devaneia. Leia também: Congresso debate captura de dados: quais os efeitos na Saúde — e muito mais

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GUERRA À FIOCRUZ

“Eu não confio nas pesquisas da Fiocruz”. A frase é do ministro da Cidadania, Osmar Terra, foi dita em entrevista ao jornal O Globo publicada na terça e se refere ao 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira feito pela instituição. Segundo ele, a Fundação Oswaldo Cruz seria prestigiada “para fazer vacina, para fazer pesquisa de medicamento”, mas “para droga, ela tem um viés ideológico de liberação”. A acusação de direcionamento dos resultados de uma pesquisa que custou R$ 7 milhões aos cofres públicos poderia ser séria se o ministro não fosse, ele próprio, ideológico em sua cruzada contra as drogas.

Os argumentos de Terra para derrubar o estudo que envolveu 500 pesquisadores, contemplou 351 cidades, realizou mais de 16 mil entrevistas e concluiu que o consumo de drogas ilícitas não chegou a níveis epidêmicos no país são os seguintes: “Se tu falares para as mães desses meninos drogados pelo Brasil que a Fiocruz diz que não tem uma epidemia de drogas , elas vão dar risada. É óbvio para a população que tem uma epidemia de drogas nas ruas. Eu andei nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso não é uma epidemia de violência que tem a ver com as drogas, eu não entendo mais nada.” E, assim, Terra troca o censo feito por cientistas pelo senso comum e ainda faz um malabarismo retórico para concluir: “Temos que nos basear em evidências.”

Não é de hoje que o político, que é médico de formação, gabaritou-se como o maior adversário dos especialistas em saúde mental no debate sobre o tratamento de usuários de substâncias psicoativas. Ele vem ganhando musculatura desde o governo Temer, quando como ministro do Desenvolvimento Social e Agrário praticamente sequestrou o Conselho Nacional de Política sobre Drogas (Conad), ligado ao Ministério da Justiça. Agora, na ânsia de ser o protagonista do debate, o atropelamento da vez atingiu outro colega de governo, Luiz Henrique Mandetta, titular da Saúde, pasta à qual a Fiocruz (autarquia federal) está ligada, que vem apostando em uma gestão menos belicosa.   

O estudo feito pela Fiocruz foi financiado pelo Ministério da Justiça, através de um edital da pasta ganho pela instituição em 2014. Ontem, novamente O Globo informou que Sérgio Moro autorizou a publicação do estudo, mas manteve o entendimento de que a Fundação teria deixado de cumprir exigências do edital – o que a Fiocruz nega. A disputa está sendo arbitrada pela AGU e pode resultar na punição da instituição de pesquisa, que seria obrigada a devolver os R$ 7 milhões gastos na pesquisa encomendada pelo governo. O Nexo recuperou toda a história aqui.

Bernardo Mello Franco: “A Fiocruz não é a primeira instituição federal a sofrer ataques do governo. O presidente Jair Bolsonaro desmereceu o IBGE quando o instituto informou que o desemprego subiu. Na semana passada, o ministro Augusto Heleno pôs em dúvida a credibilidade do Inpe, que alertou para uma escalada no desmatamento da Amazônia. O Brasil vive um momento em que os donos do poder veem as universidades como locais de “balbúrdia” e buscam conhecimento nos livros de Olavo de Carvalho. A novidade é que o terraplanismo deixou de ser privilégio dos discípulos do ex-astrólogo.”

Associação Brasileira de Saúde Mental: “Além do menosprezo à instituição e aos cientistas que desenvolveram a pesquisa, causa estranheza que estes posicionamentos oficiais sejam apresentados à grande mídia em um momento onde há uma reorientação do financiamento governamental para a ampliação de vagas em Comunidades Terapêuticas privadas ou filantrópicas embasadas em afirmações sobre uma suposta epidemia de drogas, esta sim sem qualquer apresentação de dados científicos que a corroborem.”

VOLTOU

A mobilização pelo retorno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) surtiu efeito. Ontem, o colegiado foi recolocado na estrutura do Executivo federal pelo Congresso durante a votação da MP 870. O conselho havia sido extinto no primeiro dia do governo, quando Bolsonaro assinou a MP, que mexeu na estrutura dos ministérios. A intenção do governo era passar as atribuições do órgão de controle social para o Ministério da Cidadania. Mas como nossos colegas do Joio e do Trigoexplicam, Osmar Terra exonerou da pasta os principais funcionários dedicados aos temas de segurança alimentar e nutricional e colocou na coordenação do tema um servidor puxado do Ministério do Turismo, sem qualquer experiência no assunto. De acordo com a decisão dos parlamentares, o Conselho será ligado ao ministério de Terra e não mais à Presidência da República.

“É difícil, apesar da vitória, dizer como se dará o processo de recriação do Consea. Agora, o conselho estará ligado à mesma estrutura que, decorrido um semestre, pouco fez. Há duas hipóteses, a ver, sobre o destino do colegiado: ou 1. pode voltar a existir exatamente como antes ou 2. há alguma chance de que reabra as portas completamente descaracterizado”, escreveu Guilherme Zocchio.

“’REFUGIADOS”

Um dos primeiros movimentos do governo Bolsonaro foi sair do Pacto Global de Migração da ONU, compromisso adotado voluntariamente por mais de 160 países para tornar os fluxos migratórios mundiais mais seguros e ordenados. Mas, agora, a “solução” encontrada para lidar com os cubanos que ficaram no Brasil depois do fim do programa Mais Médicos será tratá-los juridicamente como “refugiados”, com base na lei 9.474 de 1997. Segundo o Estadão, o Ministério da Saúde estaria redigindo uma medida provisória que tem entre seus objetivos flexibilizar a revalidação do diploma dos profissionais. “O [Revalida] dos cubanos eu vou tratar no capítulo de refugiados e exilados. Vou tratar em outro capítulo da lei porque uma pessoa, quando é exilada, perde documentos. Os cubanos não conseguem nem pedir documentos. Cuba não manda. Nem que quisessem demonstrar o conhecimento deles, é sonegado”, disse Mandetta ao jornal. 

As entidades médicas, é claro, já apontam a contradição da abordagem escolhida pelo governo: “Se o problema for documental, o médico tem de pelo menos provar conhecimento na prova”, afirmou Diogo Sampaio, da Associação Médica Brasileira. Misturar as estações pode levar a uma batalha judicial também com médicos brasileiros: “Iremos para a Justiça defender o mesmo direito”, prometeu Thiago Maia, integrante do Mais Médicos. Para relembrar: a lei que instituiu o Mais Médicos tratava todos os estrangeiros e brasileiros formados no exterior de maneira igual, concedendo autorização para o exercício profissional no âmbito do programa.

Em tempo: não há detalhes, mas a mesma MP deve criar a carreira médica de Estado. A previsão do ministro é que o texto fique pronto até julho.

AINDA FRÁGIL

A MP 869, que trata da proteção de dados pessoais, foi aprovada ontem pelo Congresso no fio da navalha: um dia antes de expirar. Segue agora para sanção presidencial e deve virar lei.

O novo texto abre a possibilidade de que dados de saúde sejam compartilhados sem o consentimento de seu titular. Isso poderá acontecer entre prestadores, profissionais e autoridade sanitária “em benefício” desse titular. Empresas de planos e seguros de saúde podem compartilhar dados se o uso dessas informações for justificado como prestação de serviços de saúde ou assistência farmacêutica. O texto proíbe que as operadoras usem os dados para definir os riscos na contratação de pacotes ou na exclusão de beneficiários.

Quem vai fiscalizar tudo isso é a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). O órgão foi mesmo vinculado à Presidência da República, contrariando a orientação de todos os especialistas que apontam, com razão, que o setor público é um dos maiores coletores de dados e, por isso, deveria ser fiscalizado com isenção. Mas há um dispositivo que possibilita que a Autoridade seja transformada em uma autarquia daqui a dois anos.

AANPD tem um braço consultivo, o Conselho Nacional de Proteção de Dados. A pressão das empresas do setor de tecnologia da informação foi grande e elas conseguiram duplicar o número de vagas nesse conselho para quatro. No total, o Conselho tem 23 assentos. Nós, do Outra Saúde, falamos destes e outros problemas durante a tramitação aqui.

INCONSTITUCIONAL

O STF derrubou o deletério trecho da reforma trabalhista que permitia que grávidas e lactantes trabalhassem em atividades insalubres. A votação aconteceu ontem e teve o placar de 10 a 1 (o voto contrário foi dado pelo ministro Marco Aurélio). O relator do caso foi Alexandre de Moraes, ex-ministro do governo Temer que apresentou a reforma…

MUDANÇAS NAS AGÊNCIAS

O Senado aprovou ontem novas regras para agências reguladoras. Agora, os diretores indicados não poderão ser políticos ou parentes de políticos. Nem podem participar de sociedade ou comando de empresa, ou ser filiados a partidos políticos ou atuação sindical. Seu mandato foi ampliado de quatro para cinco anos como forma de compensar a proibição de que sejam reconduzidos aos cargos. Quem já está no exercício dos cargos e ainda não foi reconduzido, poderá ficar por mais quatro anos.

DISTORÇÃO

Hoje, existem 35 milhões de pessoas vivendo com o HIV em todo o mundo. E embora mais da metade dos portadores do vírus sejam mulheres e a doença seja a principal causa de mortes na população feminina em idade reprodutiva, grande parte da pesquisa para encontrar novos tratamentos e vacinas é feita a partir de testes clínicos realizados apenas em participantes do sexo masculino. Um levantamento feito em 2016 mostrou que 11% dos participantes dos testes para tratamentos de cura eram mulheres. O número melhorava um pouquinho para novos antirretrovirais: 19%.

A diferença, apontada em reportagem do New York Times, pode ter graves consequências, já que homens e mulheres respondem de maneira diferente à infecção. Num primeiro momento, o sistema imunológico feminino costuma operar a todo o vapor, mantendo o controle vírus sob controle por um período que vai de cinco a sete anos. Depois, porém, a doença se desenvolve mais rapidamente nas mulheres do que nos homens. Elas são mais propensas a sofrer efeitos colaterais, como ataques cardíacos e derrames. Mulheres e homens também reagem de maneira diferente às drogas que já estão no mercado.

Uma das raízes da sub-representação das mulheres está na história da Aids e no perfil dos infectados, explica a reportagem. Isso porque a maior parte dos participantes dos testes clínicos continua a ser homens gays, que foram as maiores vítimas da doença nos anos 1980. Eles formaram redes de apoio mútuo, entendem a importância de participar dos esforços de pesquisa e advogam seus direitos. Elas, ao contrário, tendem a lidar com a doença de forma mais solitária. Para mulheres negras, o histórico de exploração em testes médicos feitos sem seu consentimento traz uma carga negativa para as novas gerações. Além de tudo, nos Estados Unidos, a agência reguladora tem restrições mais rígidas para a participação de mulheres em idade fértil. E, ainda por cima, “é difícil contar com cientistas que levem a sério a necessidade de engajar mulheres”, lamenta uma das entrevistadas, Eileen Scully, da Johns Hopkins University. Ela conduziu o único teste clínico da história que contou apenas com participantes mulheres. 

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