Guerra às drogas: a escolha pelo genocídio dos pobres

Estados gastam bilhões em políticas antidrogas ineficazes. Sob o discurso moralista, formam policiais focados na repressão ao microvarejo e jovens negros. Sequer arranham a infraestrutura bilionária e internacional do tráfico

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Por Renato Sérgio de Lima, na Piauí

Os estados de São Paulo e do Rio de Janeiro gastaram, juntos, ao menos 5,2 bilhões de reais para a aplicação da Lei de Drogas em 2017 – o equivalente a 12% de todas as despesas com segurança pública, justiça criminal e prisões nesses dois estados naquele ano. O valor consta de estudo divulgado nesta segunda (29) pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Cesec). A título de comparação, tal quantia seria suficiente para comprar mais de 90 milhões de doses da vacina do Butantan contra a Covid-19 e imunizar 21% da população brasileira.

Só por esses dados já seria possível discutir o alto custo da opção político-institucional de guerra às drogas, que faz com que o padrão de policiamento pautado no enfrentamento e no confronto seja visto por muitos como o mais adequado para lidar com crime e violência no país. E isso independentemente das evidências de que tal modelo não funciona e que vitima, tanto em termos absolutos quanto proporcionais, muito mais jovens e negros das periferias brasileiras.

Vivemos num eterno pêndulo aético que desconsidera os efeitos negativos de um modelo de controle do crime e das drogas falido e que aceita “mirar na cabecinha” como estratégia legítima de ação policial. Modelo esse que, por sinal, está sendo superado nos Estados Unidos, berço da doutrina de guerra às drogas, e em vários outros países. Nova York, por exemplo, aprovou esta semana a legalização da maconha para fins recreativos. Com isso, estima-se que o mercado da maconha no estado gere 1,3 bilhão de dólares em impostos, empregue 76 mil pessoas e movimente 4,2 bilhões de dólares até 2027.

No Brasil, ao contrário, a Lei de Drogas data de 2006 e é tida como uma das principais responsáveis pelo crescimento da população prisional do país. Afinal, ao não distinguir com critérios objetivos de diferenciação entre tráfico e uso, mais usuários acabam sendo enquadrados como traficantes e, nesses casos, suas penas, que variam de 5 a 20 anos (ou mais, se o crime incluir a participação em facções criminosas ou envolver tráfico interestadual ou internacional), sobrecarregam o sistema prisional como um todo.

Isso não impede que hoje, se perguntarmos para um policial brasileiro qual a sua principal função, ele provavelmente responderá que é “combater traficante”. A atividade policial é vista como sinônimo de enfrentamento e de dedicação profissional. Mas dados do Instituto Sou da Paz para o estado de São Paulo mostram que um pouco mais de 50% das ocorrências policiais envolvendo maconha apreendem não mais do que 40 gramas desta droga. O foco da polícia está no microvarejo da droga e avança de forma tímida no rastreamento do dinheiro do tráfico.  

São poucos, portanto, os legisladores e gestores que pensam a partir das evidências e que, concretamente, propugnam saídas que poderiam fazer com o que gasto com as guerras às drogas fosse mais bem empregado em programas de saúde pública e prevenção, à semelhança do que o Brasil conseguiu fazer com o tabaco. Também são raros os investimentos em novos formatos de investigação criminal e priorização de ações de inteligência de alto impacto. Falar de política sobre drogas ainda é motivo de tabu na política.

Assim, como efeito desse, digamos, negacionismo entorpecente, é possível estimar que, em 2017, o país gastou ao menos 15,4 bilhões de reais com a guerra às drogas (projetando os dados de Rio e São Paulo para todas as 27 Unidades da Federação e para os gastos da União). Esse valor é bastante alto, por um lado, e coloca em xeque a capacidade de investimento e as estruturas da segurança pública e da justiça criminal do país.

Ele traduz o enorme esforço de enxugar gelo sem conseguir, no entanto, reduzir crimes violentos e/ou os custos sociais da violência, estimados em 5,9% do nosso PIB. Aliás, 2017 foi o ano com o maior número de Mortes Violentas Intencionais da história do país, com quase 64 mil mortes, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A guerra às drogas no Brasil é travada como se liderada pelo general Pazuello e do alto da sua grande reputação de planejamento e logística.

Por outro lado, ela é incapaz de fazer frente aos desafios postos por um mercado cujo tamanho é estimado entre 400 e 900 bilhões de dólares anuais no mundo, este último de acordo com estudo da Unifesp. Em outras palavras, o gasto anual com a aplicação da Lei de Drogas no Brasil, que ocupa papel estratégico nas rotas internacionais de entorpecentes, por fazer fronteira com três dos principais produtores de cocaína do mundo (Colômbia, Peru e Bolívia), seria equivalente, se aceitarmos o valor mais alto como o correto, a insignificantes 0,57% do mercado da droga no mundo.

O estudo do Cesec permite afirmar que gastamos muito para os padrões da economia e do setor público brasileiro e praticamente nada diante do tamanho do mercado mundial de drogas. Não há relação custo x benefício capaz de justificar a continuidade desse modelo. Porém, se mudanças parecem estar fora do horizonte no curto prazo, é preciso mais do que nunca pensarmos em alternativas e buscarmos formular políticas públicas mais efetivas e eficiente; políticas que consigam mensurar todos os impactos que a guerra às drogas gera no funcionamento e nos custos do sistema de justiça criminal e segurança pública do país.

Isso não será fácil. O Brasil teima em não enxergar que aceita dividir sua sociedade entre sujeitos de direitos e sujeitos matáveis. E a guerra às drogas é funcional e serve para separar quem poderá estar em um dos grupos e quem estará no outro – à semelhança do que estamos vendo agora com o cenário de colapso da saúde pública que gera milhares de mortes, enquanto muitos dançam sobre corpos em festas e baladas clandestinas pelo país. 

A frase da ex-apresentadora Xuxa sobre utilizar os presos como cobaias de testes de medicamentos é outro exemplo desse quadro de dissonância ética e da forma como damos valor à vida e à cidadania, mesmo que depois ela tenha pedido desculpas pelas palavras desferidas.

Por fim, a dificuldade enfrentada pelo Cesec na obtenção dos dados do estudo merece destaque negativo. Ainda temos instituições opacas demais e permeadas pela cultura do segredo e do silenciamento. E isso só muda com engajamento e transparência. É verdade que, na medida em que vivemos em uma sociedade bastante conservadora e imersos no transe coletivo imposto pelo bolsonarismo insensível à vida ou à dor da perda, as perspectivas não são animadoras. Mas também é verdade que é possível transformar a realidade, mesmo que sob o efeito de altas doses de ceticismo e incertezas.

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Este texto estava sendo redigido quando a morte pela própria polícia de um soldado da PM da Bahia em aparente surto psicótico ganhou destaque nas redes sociais, em especial com as tentativas de lideranças sindicais dos policiais e de políticos ligados ao bolsonarismo mais radical para desestabilizar o governador Rui Costa. O custo das guerras às drogas e os riscos de partidarização e politização das polícias são imensos. Eles são o combustível perfeito para colocar fogo no país e estimular ideias como “estado de sítio” e outras teses autoritárias que estão sendo testadas nos últimos meses. Tenho alertado aqui na piauí sobre tais temas faz mais de um ano e é urgente que as polícias não caiam no canto da sereia que as levará para a ruptura e para a tragédia.

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