Relatos de uma endoscopia bem-sucedida

“Nunca fez? É o maior barato. Te aplicam uma misturinha direto na veia. Soninho delícia e irresistível. Um serviço desse nível deveria ser tratamento de luxo”

Cosmic Float

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Por Maria Bitarello

Inspirada em minhas recentes aventuras numa clínica no Alto da Lapa, em São Paulo, misturada a outras vividas em outras clínicas, em Minas Gerais – aliadas a um desejo agora declarado de que as “viagens” com supervisão médica fossem uma prática de lazer e entretenimento –, apresento aqui os relatos de uma paciente de um dos grandes males do século: a gastrite (e suas derivações gástricas, como refluxo, esofagite, úlcera e afins). Segundo informações de internet nada precisas, o Omeprazol – remédio usado em tratamentos gástricos – é um dos medicamentos mais consumidos no mundo e mais da metade da população mundial será afetada pela gastrite em algum momento da vida, com as chances aumentando à medida que os anos se acumulam. Proponho, portanto, aos sofredores gástricos que nos unamos! Somos a maioria ácida e dolorida! Que encontremos algum prazer na dor!

Agora, o relato:

Fazer endoscopia é o maior barato. Nunca fez? Putz, se algum dia precisar, não tema. É o maior barato. Já fiz quatro. Vão te aplicar uma misturinha direto na veia. Droga fina. Você apaga em segundos. Soninho delícia e irresistível. E com supervisão médica. O que pode dar errado? Um serviço desse nível deveria ser um tratamento de luxo. Você não lembra de nada, mas depois do exame e do delírio catatônico você ganha uma extensão da viagem na salinha ao lado de onde eles fazem o procedimento. Lá, aos poucos, você vai acordando e curtindo. As sensações vão voltando. Visão. Audição. Tato. Tipo um bebê descobrindo o próprio corpo. Aí você apaga de novo. Rapidinho. E acorda mais uma vez.

Já passou meia hora. Tinha uma pessoa do seu lado. Sumiu. Fecha o olho rapidinho. Mais meia hora. Agora tem um cara roncando. Entra uma pessoa descabelada e com o olhar opaco, escorada no enfermeiro. Ela te olha. O olhar te atravessa. Fecha o olho. Abre o olho. O cara que roncava também tá de olho aberto agora. Bom demais, né, nos dizemos consensualmente em silêncio. Na hora eu não sei disso, só mais tarde me contam que na verdade eu falei isso em voz alta. Ele dá uma gargalhada. Fecha o olho. Abre o olho. Agora tem um lanche do meu lado. Um toddynho e um sanduíche de pão com mortadela. Hummm. Minha boca tá tão seca. Tento falar e soo como uma infante maluca. Meu cérebro envia o comando certo: “tem água?”. Mas o que sai é algo que se assemelha ao som de uma criança embriagada pedindo colo.

Ninguém me entende. Peço um beijo nos lábios. Faz muito sentido pra mim, naquela hora. Não é apetite sexual. Se me beijar, vai ver como minha boca tá seca. Logo vai compreender minha súplica. “Quero um copo d’água!”, meus olhos gritam, implorando. Mas minha cara esplêndida de relaxamento e chapação nada transparece. Ou talvez comunique um “só… podecrê…”. Deixo pra lá. Fecho os olhos de novo. Abro.

Alguém comeu meu sanduíche. E essa mulher tá bebendo meu toddynho. O cara que roncava tá sentado, me olha. A médica entra no meu campo de visão. Do nada. De onde ela veio? Onde eu estou em relação a onde estive? Ela fala, voz de adultos no Muppet Babies. Sorriso. Uma mão firme e acalentadora aperta meu tornozelo lááááá no outro extremo da cama. “Você já pode ir”, ouço nítida e subitamente, como se meu ouvido se desentupisse de um susto. Eu acho que balanço a cabeça, sorrio, mas já nem sei. Talvez sequer tenha me movido.

Já estou na recepção. É. Como se deu? Vim andando? Decido perguntar à recepcionista. Agora já sei falar. “Vim andando?”. “Sim, a senhora veio andando”. “Agora? Sozinha?”. “Agorinha, com ela”. Ela. Olho pro lado. É a mulher que estava tomando meu toddynho. E ele? O cara que não entendeu que eu queria um copo d’água, mesmo depois que pedi pra me beijar, e ele ainda por cima beijou. Safado. A mulher do toddynho responde. Ela veio me acompanhar. Agora reconheço: é minha mãe. Conto pra recepcionista, em tom íntimo e confidente, que tenho uma gastrite. Ela me entrega o resultado do exame, com imagens magníficas de minhas vísceras. Eu tiro o laudo da sacola com dedos de gelatina bamba.

“O que isso significa?”, pergunto. “Você agora vai ter que levar o resultado ao seu médico pra ele te dizer”. “Mas você não pode me contar agora?”, insisto com a recepcionista. “Quero saber se é isso mesmo. É gastrite?”, pergunto em dialeto chapadol. “Depois o seu médico vai olhar com você”, ela diz, quase com amor. Um braço me conduz pra fora. Dou tchau pras minhas amigas da recepção. Elas são tão legais. Nossa, gostei demais delas. Me viro pra olhar o braço que me segura. Reconheço a mão presa a ele. Vejo no começo do braço o cara que me beijou. É meu outro acompanhante. Meu melhor amigo.

“Que bom que você tá aqui né”, eu digo. “Eu também achei bom ter vindo com você”. “Eu tô com gastrite, te contei? De novo. Foda né”. “Que chato, né…”. “É. Toda hora isso né. Já nem sei. Nossa, mas a endoscopia é boa demais! Aonde vamos nesse carro?”. “Pra casa, vou deixar você e sua mãe lá”. “Oi mãe. Foi boa demais a endoscopia né?”. “Parece que sim. Você tá se sentindo bem?”. “Tô ótima. Muito boa. Tá bom. Aqui ó, hum, gostoso apertar assim. Tô com sede. A gente ficou muito tempo aqui?”. Minha mãe responde de novo. Parece que já fiz essa pergunta muitas vezes essa manhã. Me calo. Observo o mundo pela janela. Chegando em casa, depois de um caminhar cambaleante, me deito na cama e encaro o teto. Estou estupefata. A vida é boa, né. A endoscopia também. Boa demais. Por algum tempo, me esqueço da gastrite. Não sinto nada. Nenhuma dor. Adormeço de novo. Cheia de esperança. De entusiasmo.

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