Um ensaio sobre a arquitetura do medo

“Menino-Aranha” narra a história — quase lenda urbana — de um garoto recifense. Mas também trata dos edifícios, burgueses e cercados, que sua humanidade ousava devassar

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“Menino-Aranha” narra a história — quase lenda urbana — de um garoto recifense.  Mas também trata dos edifícios, burgueses e cercados, que sua humanidade ousava devassar

Por William Hinestrosa

Nesta coluna, William resgata e analisa filmes de curta-metragem brasileiros que estão disponíveis na internet.

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O curta-metragem “Menino-Aranha”, dirigido por Mariana Lacerda, inicia com uma espécie de convite. Estamos no terraço de um alto edifício, vemos o piso desse terraço e em seguida a câmera se desloca até o parapeito de onde temos uma noção da altura da construção. Sobre a imagem surge o título e a câmera a partir desse momento adquire um movimento giratório e se lança para baixo por meio de um vão do prédio numa cena que em muitas obras cinematográficas simularia a ação de suicídio. Não é um convite para apenas experimentarmos sensorialmente essa vertigem, é um convite para nos aproximarmos de fato do sentido do filme.

O seu sentido está justamente na janela em que a câmera estaciona no andar logo abaixo do terraço. É uma janela com uma tela, daquelas que são usadas para evitar o suicídio involuntário de animas e crianças. Sim, o sentido dessa imagem vai em direção ao risco que representa a relação entre uma janela e uma criança, mas não a possibilidade de um infante executar o movimento de dentro pra fora, mas o seu contrário, o risco de uma criança entrar por essa janela.

Logo após esse início, as imagens continuam nos apresentando fachadas de edifícios, o áudio sobre essas imagens são vozes anônimas que nos fornecem informações sobre as origens de Tiago João, o menino-aranha, nascido em 1986 num hospital psiquiátrico, órfão de mãe e que desde os seus sete anos de idade cometia furtos em apartamentos acessando-os por fora, escalando os prédios sem o recurso de nenhum equipamento e despreocupado com a altura.

As imagens que vemos nos quatros minutos iniciais são essas fachadas, algumas cenas mais vertiginosas que outras, mas no geral é uma compilação que estabelece uma indicação ao nosso imaginário. As vozes anônimas, até aqui todas masculinas, nos fornecem elementos para visualizarmos como seria possível escalar todos aqueles prédios, são detalhes que nos estimulam a construir mentalmente as cenas de um menino escalando prédios para assaltar apartamentos.

Memória e imaginário. “Menino-Aranha” se comporta como um representante da tradição oral, em especial daquelas relacionadas às lendas urbanas, que sempre povoaram os imaginários de diversas gerações. Seu modo de comunicar é um instrumento de exercício para pensarmos nossas próprias relações com a memória. E isso é significativamente importante no curta de Mariana Lacerda: sem o exercício do imaginário tudo se perde na sua narrativa.

Dado isso, estamos diante de uma delinquência, loucura, lenda urbana ou uma brincadeira de criança?

Aí um surge um novo convite: descer das alturas dos prédios de Boa Viagem e ir ao chão. A cena é direta, estamos descendo dentro de um elevador cuja vista é o mar da praia de Boa Viagem. A imagem não é nada turística, o céu está cinza e carregado, o mar está escuro. Seguiremos falando de um assunto sério, denso, importante.

As imagens seguintes nos mostram o interior de um abrigo para meninas, a câmera é errática por esse espaço. Aparece aqui pela primeira vez uma voz feminina informando que numa das apreensões do menino aranha, o juiz disse que não havia uma normativa onde ele se enquadrasse, e assim Tiago João foi conduzido não a um reformatório de crianças e sim a um abrigo de meninas adolescentes; elas tomavam conta dele.

Eu diria que é o único momento de chão do filme, o espaço que serviu de acolhimento ao menino aranha nos é apresentado com as imagens que adotam um caráter de intimidade. A câmera passeia pelas paredes, móveis, calcinhas, canecas, praticamente nos provocando o afago íntimo que tão bem recebia o menino aranha nos dias que ali ele passava. Um dos depoimentos inclusive ressalta a felicidade de Tiago ao voltar a esse abrigo, chegando ao cúmulo de cometer um delito na frente de um policial para poder retornar.

Na sequencia vemos novamente imagens aéreas e vertiginosas dos altos edifícios da região de Boa Viagem no Recife, reforçando uma dialética importante no filme. As fachadas e imagens desses prédios não nos remetem a nenhuma intimidade, ao contrário, são unidades distantes, isoladas. Enquanto que a câmera que se comporta na intimidade do abrigo das adolescentes nos fornece o tom de um chão compartilhado, quase uma oca indígena. Tá certo que se pode compreender esse abrigo como uma coletividade forçada, mas também podemos enxergar ali uma humanidade que respira o olhar ao outro.

E foi justamente esse momento de chão que me sensibilizou para uma reflexão de ver o filme não como uma obra para nos contar uma lenda urbana curiosa, muito menos o registro de uma delinquência juvenil. Ele nos insere no centro de uma questão que considero bem pertinente aqui: a arquitetura do medo. Aos sete minutos e trinta segundos de duração temos um depoimento significativo em voz feminina:

“O menino aranha, ele realmente é uma prova de que não adianta construir as nossas cidades a partir de uma arquitetura do medo”

Essa frase inverteu tudo que eu havia identificado como um trabalho de memória desse curta, pois o imaginário, que desenhei e esbocei perante as imagens dos prédios, levava ao centro exclusivamente o personagem do menino aranha e sua trajetória trágica. O que devo refletir agora é sobre como essa trajetória atravessou a arquitetura do medo nas cidades que construímos.

A potência da memória na qual o filme trabalha não se encontra no inusitado modus operandi para furtos e aventuras de Tiago João, mas sim na aproximação que temos com as fachadas das construções de altas altitudes, pois aqui as imagens são os rastros da nossa incapacidade de estabelecer espaços agregadores. E as imagens no chão entre calcinhas, canecas, paredes riscadas e num festivo São João, são rastros das nossas poucas capacidades em criar espaços de afeto.

“MENINO-ARANHA”

(13 minutos, 2008, PE/SP)

Sinopse: Menino-aranha: uma real lenda urbana contada numa Recife do final da década de 1990.

Direção e Roteiro: Mariana Lacerda

Direção de Fotografia: Kiko Goifman, Marcelo Lacerda

Trilha Sonora: Lívio Tragtenberg

Montagem: Diego Gozze

Produção Executiva: Cláudia Priscila e Jurandir Muller

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