Tsipras: não contem com nossa capitulação

Em discurso ao Siryza, líder grego relata mudanças já alcançadas, esforço para tributar elites e miséria da aristocracia europeia: pedem que esqueçamos a democracia

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Em discurso aos parlamentares do Siryza, primeiro-ministro grego relata mudanças sociais já alcançadas, esforço para tributar elites e miséria da aristocracia europeia: “pedem que enterremos a democracia”

Por Alexis Tsipras

Companheiros,

Em alguns dias, teremos completado cinco meses no governo.

Foram cinco meses de pressão extremamente alta para todos nós. Desde o início, nos vimos ante um estado de coisas interno e externo que não criamos.

Economia e sociedade dizimadas por seis anos de continuados cortes e recessão que destruíram a produtividade da Grécia, fizeram o desemprego chegar às alturas, exacerbaram as desigualdades sociais e levaram milhões de gregos à miséria e à exclusão social.

Essas circunstâncias, nós as herdamos. Não nos surpreenderam.

Todos sabíamos bem dos tremendos problemas que havia, e fizemos uma valente escolha política. Nesse momento — o mais difícil para o país –, nós reivindicamos a responsabilidade de governar e o povo nos deu.

E nós o fizemos porque vimos o país naufragando cada dia mais fundo, por causa das regras do Memorando imposto pelo governo que nos antecedeu. Nós entendemos que em pouco tempo a situação seria irreversível – não só para a economia grega, mas para os direitos e expectativas da maioria da sociedade que buscamos representar.

Por tudo isso, estávamos preparados para o que viria. Sabíamos que governar a Grécia não seria um piquenique. Não teríamos um dia de descanso ou trégua.

Mas não cedemos.

Enfrentamos o fim do “Programa” dia 28 de fevereiro, obtendo um acordo que nos deu oportunidade e tempo para negociar, e para começar a cumprir o que prometemos ao povo grego.

Ninguém jamais dirá que esses meses passados foram fáceis.

Apesar da falta de financiamento externo, dos limites à liquidez, das “armadilhas” que criou para nós o establishment do Memorando – tanto dentro da Grécia, como no exterior – fato é que continuamos de pé e prontos para continuar adiante.

Apesar de nossa atenção ser empurrada constantemente para as dificuldades das negociações, conseguimos aprovar as primeiras medidas de alívio que visam a ajudar os mais despossuídos da nossa sociedade.

Aprovamos lei de providências contra a crise humanitária – que trouxe alívio a milhares de famílias e empresas endividadas. Reforçamos o Tesouro e reabrimos a rádio pública – medidas que, todas elas cuidavam de aliviar as vergonhosas condições que resultaram de cinco anos de Memorando.

Além disso, começamos a corrigir algumas injustiças cometidas contra o setor público, recontratando vigilantes escolares e os faxineiros do ministério da Fazenda; abolimos a taxa obrigatória de cinco euros para atendimento hospitalar; começamos a legalizar o quadro da indústria da informação; a reorganizar o futebol, mediante nova lei para os esportes; modernizar nosso sistema prisional congestionado; e já votamos uma lei para recompensar cidadãos de segunda geração de imigrantes.

Cada uma dessas medidas, cada uma dessas intervenções, exigiu batalha tremenda contra o establishment. Batalha contra preconceitos, ideias pré-fabricadas, bloqueios –  dentro do país e fora.

Planejamos continuar o nosso trabalho, sabendo perfeitamente que muitas dificuldades nos aguardam. Haverá ainda muitas lutas. Mas é nossa responsabilidade carregar esse peso que nos cabe, com determinação e coragem, enquanto o povo grego apoiar nossos esforços, enquanto se mantiver ao nosso lado e confiar em nós.

Há ainda muito o que fazer para introduzir mudanças significativas e duradouras na realidade miserável e desastrosa. As batalhas mais difíceis estão à frente e temos de nos preparar para elas. Para ser justo, há também questões que deixamos sem tocar, embora isso não sejamos os únicos responsáveis por isso.

Talvez ainda não tenhamos feito tudo o que poderíamos para combater a evasão fiscal. Mas já começamos a mexer neste ponto. Há atrasos também no combate contra a corrupção, e em alguns casos, chegamos a permitir que forças do Memorando comandassem alguns movimentos políticos e sociais. Como vocês sabem muito bem, governo e poder real são duas coisas diferentes.

A luta que é hoje nossa prioridade é instalar na Grécia uma democracia genuína, fazer do povo grego nossa prioridade mais uma vez, desmantelar o regime do Memorando de cima abaixo, e restaurar a justiça. Para isso convoco todos a contribuir: com crítica construtiva, destacando os problemas reais, apoiando as iniciativas, pressionando os ministros, e trabalhando incansavelmente para manter informado o povo grego.

Tenho certeza de que, se mobilizarmos toda nossa força em espírito de unidade e solidariedade, se temos a confiança do povo grego, nos próximos quatro anos teremos aqui um verdadeira primavera democrática. Nosso país realmente precisa disso.

* * *

Pré-requisito para conseguir avançar é encontrar uma solução para o problema de financiar o país. […] Muito estranho nos parece que as instituições não apenas “exijam” altos objetivos fiscais, mas, ao mesmo tempo, não aceitam as medidas que oferecemos para acertar as diferenças. É mais que hora de deixar absolutamente claro que a questão de impostos e, especificamente, a questão de quem paga que impostos, é integral e exclusiva responsabilidade do governo grego.

É chegada a hora de obrigarmos a oligarquia grega a carregar, ela também, a parte do peso que compete a ela, para fazer da Grécia país desenvolvido. Essa não é tarefa exclusiva das classes trabalhadoras, dos empregados, dos aposentados, dos pequenos e médios empresários.

* * *

A persistência das instituições obcecadas por nos fazer seguir um programa de arrocho que obviamente já fracassou, a insistência delas em impor medidas que já sabem que não aceitaremos, não é nem erro, nem excesso de dedicação aos interesses dos bancos.

O mais provável é que as instituições tenham motivos políticos para insistir tão obcecadamente em vias impossíveis. Seguem um plano para humilhar exemplarmente não só o governo grego, mas também a própria Grécia. Disseminam uma espécie de “mensagem” para o povo grego e para todos os povos da Europa: a de que nenhum governo popular poderá jamais mudar coisa alguma. Que não é verdade que o valor dominante na Europa moderna seria alguma democracia. Que tudo continua exatamente como antes, sob o tacão de um neoliberalismo cruel e socialmente injusto.

Chega-se a duvidar de que alguém, desses que parecem que estariam negociando conosco, tem qualquer interesse verdadeiro de encontrar qualquer solução. As conversações são feitas em termos equânimes? Os interlocutores dos gregos negociam de boa fé? O que se vê é show para demonstrar força, com a intenção de bloquear qualquer tentativa para pôr fim à austeridade, qualquer tentativa para construir modelo econômico e social que dê prioridade aos interesses e necessidades da maioria da sociedade.

O Banco Central Europeu usa tática semelhante: a asfixia financeira que tentam impor à Grécia só confirma isso. Desde o dia 20 de fevereiro, está vigente uma proibição, emitida pelo BCE, que limita a emissão de bônus do Tesouro grego – proibição que não tem qualquer base legal, porque a validade do acordo de empréstimo foi prorrogada e o país está em processo de negociação. Pois mesmo assim o BCE insiste em suas táticas de simulação de afogamento.

Seriam essas táticas encaminhamento democrático e racional, numa negociação entre parceiros?! Dentro da União Europeia? Dentro da zona do euro? O que há, nessas táticas, que não deva envergonhar profundamente toda a Europa?

* * *

Apesar de recentes declarações agressivas, ainda creio firmemente que há forças na Europa que reconhecem os erros do passado e compreendem o quanto é crítica a atual situação. Há forças, sim, trabalhando em direção a uma solução justa.

E essas forças prevalecerão, desafiando os que escolhem como sua única estratégia a tensão, as ameaças gritadas, as táticas de Guerra Fria.

Mas para que prevaleçam, é preciso atribuir responsabilidades claras entre as instituições. E preciso que parem, de uma vez por todas, com propostas absolutamente inaceitáveis e irrealizáveis.

No pé em que estão hoje as coisas, dominam as posições do FMI, que não passam de listas de medidas absolutamente inaceitáveis e irrealizáveis, que apenas acrescentam novas tonalidades à posição europeia sobre a sustentabilidade da dívida grega. Não passa de simples recusa a discutir seja o que for.

Resultado disso é que nenhuma das “propostas” que nos apresentaram são articuladas pela razão.

É o oposto: só nos propõem medidas que levam ao aprofundamento da recessão, ao aprofundamento das desigualdades. Negam-se, deliberadamente, a tomar qualquer providência objetiva, e essa negativa obcecada que se recusa a discutir a questão da insustentabilidade da dívida grega leva a um aumento da incerteza e interfere diretamente no próprio futuro da Grécia e da eurozona.

Em resumo, estão-nos propondo que aceitemos um “acordo” que não resolverá nenhuma das questões à frente, e empurrará a economia grega, que pode começar a recuperar-se, para o mais fundo de nova recessão — um desincentivo para qualquer investimento estratégico.

Se o objetivo é continuar com um programa inspirado pelo FMI, que já foi amplamente reconhecido como perfeito fracasso, e sem que se tome qualquer medida em relação à dívida, nesse caso não nos deixam escolha: ficamos na obrigação de não capitular.

Pedimos a nossos parceiros que fossem claros sobre os seus objetivos. Querem chegar a alguma solução para o “problema grego”, ou só querem manter “vivo” o problema, por tempo indefinido, para sempre? Querem que o FMI participe do acordo – apesar de todas as suas “receitas” fracassadas?

É preciso não esquecer que o FMI também é criminalmente responsável pela situação em que a Grécia se vê hoje. Afinal, foi o FMI quem “trocou” os fatores multiplicadores, em seus cálculos da recessão. E, embora o FMI tenha “pedido desculpas”, pouco fez além disso para ajudar os que perderam empregos e a chance de viver vida digna, nem pôs comida à mesa dos milhares de pobres socialmente excluídos pelos “pequenos erros” de cálculo do FMI.

O FMI não aumentou aposentadorias, nem reabriu as pequenas empresas que destruiu com seus “pequenos erros”. As “desculpas” não foram nada além de confissão cínica, feita por tecnocratas, que não tiveram nenhum efeito objetivo de qualquer reparação de danos.

É chegada a hora de as propostas do FMI serem avaliadas. De serem julgadas publicamente. Não por nós. Não pelos gregos, mas pela Europa. É chegada a hora de a eurozona discutir seriamente o futuro da Grécia – e o futuro da própria eurozona.

Será que quer, insistindo obcecadamente em sua posição inicial, levar um país e seu povo à humilhação e ao empobrecimento? Ou quer alcançar um acordo que promova a democracia e a solidariedade? Esse é o dilema europeu. Essa é a questão criticamente definitiva, à espera de resposta.

* * *

Como já dissemos, e repetidamente provamos e comprovamos, queremos continuar a trabalhar para alcançar um acordo. Mas o mandato que o povo grego nos deu não inclui qualquer ambiguidade criativa. É mandato que nos foi dado para acabar com a política do arrocho, chamada de “austeridade”. Para fazer isso, temos de conseguir um acordo com claros traços redistributivos, que não jogue todo o peso às costas dos trabalhadores e aposentados, mas distribua o peso também sobre as costas dos que, até hoje, jamais pagaram pela parte que lhes coube, sempre.

Buscamos um acordo que porá fim à incerteza e acabe decisivamente com a conversa sobre alguma saída da Grécia do euro — o Grexit. De modo que possamos capitalizar indicadores econômicos positivos e extrair vantagens de nossa real possibilidade de crescermos. Por isso, o acordo terá de incluir cláusulas cogentes que obriguem a algumas atitudes claras para solucionar os problemas de financiamento que o país enfrenta e que foram exacerbados pelo Memorando. E atitudes pelas quais as instituições credoras também sejam responsáveis.

* * *

Basearemos nossas decisões finais sobre esses critérios específicos. Não nos deixaremos arrastar por ditas ansiedades nem pela pressão do momento pelo qual passamos. Temos o governo da Grécia, que nos foi dado por quatro anos. Quaisquer cenários alternativos serão avaliados pelo modo como economia, sociedade, todo o país atravessarmos os próximos quatro anos.

O país que recebemos não era mais que uma colônia endividada. Nossa meta é passar adiante um país com menores desigualdades sociais, que tenha conseguido domar a evasão fiscal e a corrupção que tudo contamina, pelas redes de contatos ilegais que são como praga na administração pública. Passar adiante uma sociedade que respeita os princípios da igualdade e da distribuição equitativa de todas as cargas, com uma economia baseada em desenvolvimento sustentável que possa assegurar o bem-estar para todos os cidadãos gregos.

Nosso objetivo, sobretudo, é construir um modelo social e econômico que ajude os gregos, especialmente as classes trabalhadoras e os mais jovens. Esse é o desafio que temos pela frente. Um desafio que será determinado em grande parte pelo apoio do povo grego. Temos o apoio do povo, e continuaremos a tê-lo, enquanto formos honestos com os cidadãos da Grécia e continuarmos a defender com paixão os interesses deles.

Nossa atitude, nossa responsabilidade, nossa determinação, com o apoio de nosso povo, nos manterão fortes, acima do alcance de ameaças e chantagens.

* * * 

Estamos chegando à reta final. Reta final, pode-se dizer, quando começam as negociações reais. A habilidade do governo grego para chegar com determinação a solução justa, sem ceder em nenhum de seus compromissos essenciais, será julgada pelo resultado dessas negociações. A habilidade da Europa para conseguir parar de atirar contra os próprios pés, parar de se autoinfligir castigos e sofrimentos, e para passar, em vez disso, a pregar e defender os valores da solidariedade e da democracia, também será julgada. Creio que a Europa conseguirá.

Esse não é desafio que se impõe só aos gregos. É desafio, claro, que os gregos terão de superar, mas não é desafio só para nós. É desafio que se impõe a todo o povo europeu.

Não queremos uma Europa de castigos e chantagens, mas uma Europa de democracia e solidariedade. E haveremos de conseguir isso, com nosso determinado empenho para honrar o mandato popular, e na sequência das lutas de nosso povo e das lutas do povo da Europa.

Sejam fortes.

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2 comentários para "Tsipras: não contem com nossa capitulação"

  1. Laura Ricardo disse:

    Cada vez mais sou fã de Tsipras.
    Força! vai minha solidariedade aqui do Brasil.
    Precisamos de lideranças como a de vcs, um Sryza no Brasil de hoje.

  2. Thiago Dalla Vecchia disse:

    Nao encontrei esse discurso em nenhum editorial internacional. Podes passar a fonte por favor e a data do discurso ? Grato.

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