Teatro como uma faca no pescoço

Em “Céus”, cinco personagens tentam, num bunker, bloquear atentado terrorista. Irão confrontar-se com as contradições da condição humana, a percepção da beleza e o confronto da morte

Foto: Leo Aversa

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Por Wagner Correa de Araujo | Imagem: Leo Aversa

“Céus”

Em cartaz, no Rio de Janeiro, até 30 de outubro

De quinta a sábado, às 21 horas; domingo, às 19 horas

Teatro Poeira, em Botafogo [mapa] – Fone: 2537.8053. Duração: 100 min. Classificação: 14 anos

“Um artista é um besouro que encontra nos excrementos da sociedade os alimentos necessários à produção das obras que fascinam e revolucionam seus semelhantes”.

Esta reflexão do dramaturgo libanês-canadense Wajdi Mouawad marca sua tetralogia – Sangue das Promessas – ao cruzar segmentos ligados à origem filial perdida, aos embates pela conservação da identidade e aos extermínios nas guerras político-religiosas.

Estreada em 2009, no Festival de Avignon, a quarta peça – Céus – é permeada pelo cruel questionamento da iminência dos terrorismos sombrios e das contradições da condição humana entre o bem e o mal, entre a percepção da beleza e o confronto da morte.

Ao contrário de Incêndios, o mote aqui não é a exploração do microcosmos de um tempo familiar passado, mas do que está por vir no macrocosmos do próprio destino civilizatório.

A tragicidade metaforizada no que vem dos Céus incursiona por uma narrativa de mistérios, indagações e pistas, buscadas numa ressignificação da tela A Anunciação, de Tintoretto. Onde os querubins seriam os arautos do terrorismo opondo-se à redenção da “merda do mundo” pelo parto, de um Salvador nascido da Virgem, ou pela arte como única luz na escuridão.

Reunidos numa espécie de bunker, sem clarificada localização física e cronológica, estão cinco personagens de especificidades tecnocráticas, através de um elenco de exemplar representatividade, no seu dimensionamento psicológico e na sua presencial fisicalidade.

Na frieza calculista de Blaise Centier (Isaac Bernat), no amor paternalista de Charlie Eliot Johns (Charles Fricks), nos abafamentos secretos de Dolorosa Achê (Silvia Buarque), no escárnio mordaz de Vincent Chef-Chef (Rodrigo Pandolfo) e na interiorização da dúvida em Clément Szymanovsky (Felipe de Carolis).

Cercados de recursos computadorizados de última geração, convictos implodem pensamentos e atos, na tentativa de bloquear a ameaça de um nascituro ataque de células islâmicas.

Completando a performance, em projeções alternativas, as falas do suicida Valéry Masson (Aderbal Freire Filho desdobrando-se no comando diretorial da peça) e do pré-adolescente Viktor Eliot Johns (Antônio Rabelo), simbolizando a adesão de uma juventude vitima e algoz de uma guerra ideológica, sem eiras nem beiras.

Revelando, ainda, uma arquitetura sólida em seus elementos técnicos, do realismo cenográfico (Fernando Mello da Costa), direto e seco, à composição dos figurinos (Antonio Medeiros). Como no alcance da envolvência das projeções e efeitos visuais (Maneco Quinderé) e do incisivo sotaque da trilha sonora (Tato Taborda).

Com uma gramática teatral arrojada de pulsão cinematográfica, o comando mor de Aderbal Freire Filho está sintonizado entre a expressão do caos civilizatório da contemporaneidade e o resgate pela contemplação estética.

Onde materializa, reflexivamente, as palavras de Wajdi Mouawad:

O artista, tal qual um besouro, se nutre da merda do mundo, para o qual ele trabalha, e deste alimento abjeto faz jorrar a beleza”.

 

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