Sobre o desenvolvimento chinês (II)

Como sobrevive e avança um Estado que não reconhece soberania popular nem eleições, mas admite direito “divino” a sublevação social?

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Por José Luís Fiori*

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Para mim, uma vez que fui designado pelo povo para o atual cargo, preciso colocar sempre o povo no lugar mais importante do coração, ter sempre em mente as enormes expectativas que o povo me confia e lembrar que as responsabilidades são mais pesadas que a montanha Tai”.

Presidente Xi Jinping, Valor Econômico, 20/03/2013

O desenvolvimento chinês possui características que confundem inteiramente a ciência política ocidental, e colocam de cabeça para baixo a teoria do “estado desenvolvimentista”, formulada pelos anglo-saxões, na década de 1980. Até a segunda metade do século XIX, a China desenvolveu-se fora do mundo euro-cêntrico e só se transformou num “estado nacional” depois de 1912, e numa “economia capitalista” no final do século XX. Mas na verdade, a China tem muito pouco a ver com os pequenos estados nacionais originários da Europa, e é de fato um “estado-civilização” que não possui sociedade civil nem conhece o princípio da “soberania popular”. Apesar disto – contra todas as expectativas ocidentais – o estado chinês tem se demonstrado altamente flexível e inovador, uma contradição aparente que remete às suas origens e à história de longo prazo de sua civilização.

A China é em si mesmo um continente, e seu estado – isoladamente – é responsável por cerca de 1/5 da população mundial. O processo de centralização do poder territorial ocorreu na China há pelo menos 2300 anos, e apesar de várias fragmentações posteriores o povo chinês sempre conseguiu refazer sua unidade e preservar sua homogeneidade linguística e cultural, transformando-se no país com a história contínua mais antiga da humanidade. O que mantém o povo chinês unido não é sua identificação à “nação Han”, que foi inventada no final do século XIX, mas com uma civilização e uma história cujas raízes remontam até o ano 5000 a.C.

A China nunca teve nenhum tipo de religião oficial, nem jamais dividiu o seu poder imperial e burocrático com nenhuma instituição religiosa, nobreza ou classe econômica, como no caso das “sociedades civis” europeias. O império chinês foi gerido, através dos séculos, por um mandarinato meritocrático e homogêneo, que se consolidou durante a dinastia Ming (1368-1644), e que sempre se pautou pela filosofia moral de Confúcio (551-479 a.C.), com sua concepção da virtude e do compromisso ético dos governantes com o interesse universal do povo e da civilização chinesa.

Deste ponto de vista, o Partido Comunista Chinês apenas prolongou e radicalizou uma tradição milenar, ao criar uma espécie de “dinastia mandarim”, que segue governando a China segundo os mesmos preceitos morais confucianos do período imperial. Por outro lado, não existe na tradição chinesa a ideia da “soberania popular”, e o princípio da “soberania nacional” é associado diretamente à “soberania do estado”. Mais do que isto, a filosofia confuciana nunca valorizou a participação do povo no governo, e sempre teve uma visão elitista do estado e dos seus governantes. Mas ao mesmo tempo, a tradição chinesa sempre admitiu o direito “divino” da sublevação popular contra as autoridades que não cumprissem suas obrigações morais, como foi o caso da rebelião que derrubou a Dinastia Qing (1644-1912) e proclamou a República da China, em 1912.

Aos olhos do Ocidente, este “modelo chinês” é autoritário e inflexível e está condenado à esclerose e à paralisia decisória, como ocorreu com o estado e o governo soviético. No entanto, contra todas as expectativas, o estado chinês tem demonstrado uma extraordinária capacidade de se autocorrigir e de se reinventar, sem apresentar até hoje nenhuma tendência ou necessidade de se transformar numa democracia eletiva e multipartidária. Neste sentido, a história da China traz uma grande novidade, e coloca algumas questões decisivas para a reflexão ocidental:

  1. Ainda que seja difícil de entender e aceitar, o Estado chinês não está a serviço do desenvolvimento capitalista; pelo contrário, é o desenvolvimento capitalista e o próprio estado chinês que estão a serviço de uma civilização milenar que já se considera o pináculo da história humana.

  2. A história milenar da China e do mundo sino-cêntrico questiona a inevitabilidade da democracia eleitoral e multipartidária, que seria apenas um fenômeno datado e circunscrito, do ponto de vista temporal e territorial. Neste sentido, se poderia valorizá-la ou adotá-la, mas ela não seria inevitável, nem seria um valor universal.

  3. Neste momento a China não parece estar se propondo como um modelo alternativo, mas com certeza o seu sucesso demonstra que existem alternativas ao “modelo ocidental”, que seria apenas uma invenção europeia transformada em “necessidade histórica”.

  4. Por fim, o ingresso do “estado-civilização” chinês no sistema interestatal deixa uma pergunta: a China que se adaptará ao sistema de Vestfália, ou se será o sistema de Vestfália que terá que se adaptar ao sistema “hierárquico-tributário” do mundo sino-cêntrico?

*José Luís Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ, é Coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ, “O poder Global e a Geopolítica do Capitalismo”,www.poderglobal.net. O último livro publicado pelo autor, O Poder Global, editoraBoitempo, pode ser encontrado em nossa loja virtual. O acervo de seus textos publicados emOutras Palavras, está aqui

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