Em busca de games pós-capitalistas

Extremamente populares, jogos de computador reproduzem relações de mercado e devastação. Mas há versões rebeldes — e planejam-se ambientes não-mercantis…

Em "Journey (2012)", jogadores podem, ao invés de competir, interagir colaborativamente, estabelecer vantagens mútuas, comunicar-se por meio de música

Em “Journey (2012)”, jogadores podem, ao invés de competir, interagir colaborativamente, estabelecer vantagens mútuas, comunicar-se por meio de música

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Extremamente populares, jogos de computador reproduzem quase sempre relações de mercado e devastação. Mas há versões rebeldes — e planejam-se ambientes não-mercantis…

Por Paul Mason | Tradução: Antonio Martins

Você chega a um vilarejo e o senhor local vende espadas. Como você tem pouco ouro, vai à luta e mata alguns lobos com arco e flecha. As peles te ajudam a comprar a espada. Onde tudo isso ocorre? É claro que no Skyrim (Wikipedia | Jogo), um dos games multiplataforma de maior sucesso no momento.

No Skyrim, a ação se passa no mundo mítico de Tamriel, onde a atividade humana consiste em lutar, roubar, praticar magia e comércio. Seja nesse game, no espaço profundo do EveOnline (Wikipedia | Jogo) ou na vida marginal de Grand Theft Auto V. (Wikipedia | Jogo), a economia dos jogos de computador quase sempre assemelha-se ao capitalismo primitivo. Comércio e desafio implacável às regras são as fontes da riqueza. Trabalho humano real e comportamento sociável quase nunca contam. Se quase metade das famílias têm um console, em muitos países e classes sociais; e se 8 milhões de pessoas acumulam fortunas secretamente a cada dia, em jogos de Facebook como Farmville (Wikipedia | Jogo), um imensa carga de ideologia do livre-mercado está sendo despejada em nosso tempo de lazer.

Mas o que ocorre quando se tenta subverter a economia subjacente aos games? Participantes ativos dos mundos online estão acostumados a “desmontar o jogo” [gaming the game], ou seja, explorar as inconsistências do modelo econômico para enganar outros jogadores. No ano passado, um destes espertinhos sugou quase toda a riqueza existente num universo particular, ao elevar à estratosfera o preço de um objeto sem valor e levar seu amigo a destruí-lo. Os economistas profissionais de games – sim, esta profissão existe – gastam dias desfazendo a rede de negócios.

Minha proposta é algo diferente. Que tal se – assim como nos acampamentos Occupy, onde se tenta “viver apesar do capitalismo” –, pudéssemos viver “apesar” das formas de propriedade e da economia de mercado voraz de um game?

No caso do Skyrim, a comunidade “do contra” – programadores e designers que se divertem criando versões não-oficiais do game – já transformou de modo inteligente a economia de Tamriel. Uma das versões limita os recursos naturais disponíveis (os logos podem ser extintos…). Outra, tornou o estoque de dinheiro finito. Uma terceira introduziu um sistema financeiro alternativo, no qual o ouro conquistado e não gasto pode ampliar a oferta de crédito para outros jogadores.

Mas e se fosse possível jogar qualquer um desses games sem tentar enriquecer por meio de conquistas, violência ou outras estratégias capitalistas de comprar barato e vender caro? E se fosse possível construir estratégias de criação colaborativa, fora do mercado, e tornar gratuito tudo o que é necessário para suprir as necessidades básicas da vida? Seria possível, individualmente ou em grupos, tensionar a economia de violência e conquista – a ponto de forçar uma transição para além da competição destrutiva?

São boas questões: uma importante escola de economistas acredita que elas expressam o problema essencial com que nos deparamos aqui fora, no mundo além dos games.

Yochai Benkler, um professor de Direito de Harvard, estuda como a emergência do gratuito, da produção colaborativa e de produtos não-comerciais como a Wikipédia criam uma falha no capitalismo. Numa economia de informação em rede, ele escreve, “a ação cooperativa e coordenada, realizada por meio de mecanismos não-mercantis decentralizados… joga um papel muito maior que em épocas anteriores. (Benkler Y, The Wealth of Networks, New Haven 2006).

Os bens imateriais desestabilizam sistemas econômicos baseados na escassez. Produtos gratuitos e construídos colaborativamente, como a Wikipedia, matam concorrentes comerciais em seu setor. Produtos de código aberto – mesmo quando comercializados, como o sistema Android, que movimenta 70% dos novos smartphones – podem reduzir a fatia de mercado dos produtos proprietários, de código inacessível.

Se Benkler estiver certo, a economia real do século 21 vai se converter num gigantesco jogo, no qual as formas não-mercantis interagem com os modelos clássicos, baseados na escassez e na competição. Os monopólios persistirão, mas serão solapados pela impossibilidade de fazer valer os direitos de propriedade. As hierarquias tentarão rearticular-se, mas não poderão reagir efetivamente à emergência das redes.

Nos games coletivos, já há muito trabalho colaborativo – inclisive no interior dos ambientes de tiros e mortes. Agora, os designers começaram a responder abertamente às demandas para colaboração. O Journey (2012) (Wikipedia | Jogo) é um game etéreo e sem palavras, em que os jogadores, ao interagir, estabelecem benefícios mútuos e conexão emocional, mas não trocam explicitamente.

A maior parte dos games, é claro, permanece presa na armadilha econômica de seu tempo: são mercados fechados, com diversos modelos estáticos de negócios, a maior parte dos quais envolve a destruição dos oponentes, a conquista de monopólios ou a pilhagem e desperdício de recursos.

O desafio é desenhar um game em que a economia possa evoluir: da competição para a colaboração. Em que, ao invés de ser um cara malvado em Los Angeles, você possa divertir-se como um colaborador, numa fazenda comunitária da Andaluzia. Um game em que contrariar as lógicas dominantes esteja implícito no produto inicial, não numa versão desautorizada. Um game onde seja possível “recusar” o chamado jungiano básico à aventura e, em vez disso, transformar o mundo em que vivemos.

Para muitos de nós, a realidade econômica já envolve relações de mercado e outras, que vão muito além. Diante disso, o mundo de saques competitivos em que se baseia a maior parte dos games de computador e de console começa a se tornar enfastiante.

No ano que vem, o próprio Skyrim vai se tornar um game coletivo. Os designers prometem: o mundo mítico de Tamriel permitirá escolher entre três alianças guerreiras, nove etnias e ilimitadas tatuagens faciais. A economia proposta parece uma versão do mercantilismo do século 18: conquiste um castelo, monte nele seu posto comercial, explore as necessidades e carências.

Como fã do game, gostaria de ter a oportunidade de algo radicalmente distinto. Alguém topa #OccupyTamriel?

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