Reportagem com uma morta

Considerações sobre o erotismo na indústria cultural, cenas inesperadamente inconclusas, um suicídio e a busca vã de viver desejos evitando relações

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Por Nuno Ramos de Almeida

A filmagem eternizava-se, a realizadora olhava para o operador de câmara, como quem faz uma interrogação muda: “o que é que ele tem? está doente?”. O operador respondia com um encolher de ombros. No plateau – numa sala de um castelo nos arredores de Roma em que se gravavam três filmes de Mario Salieri – estava o ator pornô Don Fernando e uma parceira húngara. Por mais que ela fizesse, da cena não saia nada. Nos filmes pornográfico é suposto haver o chamado cumshot (o plano em que o ator goza), para provar a verdade da mercadoria. E aqui estávamos, há mais de meia hora à espera e a cena continuava mole. Já em desespero, a realizadora, Nicky Ranieri, e mulher de Salieri via chegar as 13 horas. Na sala toda a gente estava farta. Era necessário fazer alguma coisa. A realizadora tomou uma decisão e gritou: “ou gozas já ou vamos almoçar!”. Nada feito. O ator agitou as ancas mais cinco minutos, mas nada. Fomos mesmo almoçar.

Numa sala do castelo, equipa técnica, atores e atrizes comiam massa. Cinquenta minutos depois, o castelo voltava-se a agitar. Don Fernando tentava de novo e nada. No meios das filmagens, surge o patrão. Toma conta da ocorrência e dá a sentença salomônica: “Don Fernando fez-nos perder meio dia de filmagens, vai pagar a cena à garota, ela volta a gravar a cena com outro ator”.

As filmagens continuam até às duas da manhã. No castelo gravam-se os três filmes. Numa sala pequena dormitam atores e atrizes nus, à espera das ordens da produção. Um rapaz dá uma festa a uma moça, sem reparar na equipe de reportagem que filma este estranho momento de carinho. Aproveito um dos intervalos e faço umas perguntas. Não sei o que fazer. Digo uma coisa estúpida do gênero: “isto é um trabalho agradável?”. O jovem ator italiano Francesco Malcom diz-me: “é muito agradável, mas é só sexo. Amor é o que fazemos na cama com a nossa mulher”. As cenas sucedem-se. O produtor garante-me que são todos “uma grande família”. Na sala grita-se “ação”. As atrizes arfam esforçadamente. Acaba-se a cena. Todos se calam. Encontro uma atriz francesa (Karen Bach que veio a participar no filme escândalo “Baise-moi” e suicidou-se no seu apartamento em Abril de 2005), sai-me mais uma pergunta moralista, sobre como tinha vindo para esta profissão, o que pensavam os familiares. Olha-me nos olhos e responde-me que ninguém gosta que a filha faça isto. A rodagem do “Racconti dall’oltretomba”, de Salieri, continua. Passo a gravar sem parar. Vem-me à memoria uma história com um camarada da SIC (Paulo Varanda) que foi fazer a reportagem sobre o “Fim de Semana Lusitano” e a quem o produtor, no fim, brinda com uma VHS com a sequela “O Fim de Semana Lusitano 2”. O meu colega agradece educadamente e faz-lhe notar que teme não poder compreender o filme, porque não viu a fita anterior. O produtor sorri e diz-lhe: “gravamos tudo no mesmo dia, e dividimos em duas cassetes, é tudo a mesma coisa”. Eu lembro-me da história e começo-me a rir.

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