Provocador, Airton Paschoa dispara Citações

“Este livro — esperemos que infeccioso, da esquerda em transe — este livro convoca os demônios todos do indigitado, um por um, e quase sempre na condição de testemunhas de acusação”

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Por Airton Paschoa | Imagem: Pablo Picasso: Artist and His Model, 1926

Citações é o título do próximo livro de Aírton Paschoa, a ser lançado ainda em 2016. O autor, que já publicou Contos TortosDárlinVer Navios, Banho-Maria Poemitos oferece antecipadamente, em Outras Palavras, trechos da obra. Citações virão em quatro remessas. Leia também a segunda, a terceira e a quarta partes. A seguir, a primeira, precedida de curioso prólogo.

Citação das Citações

Faço saber, a quem interessar possa, que Citações é livro que se vale de fórmula liminar do mundo judiciário. Publicada em diários da justiça, a fim de que não alegue ignorância, a citação intima o cidadão a comparecer diante da autoridade e responder ao processo que se lhe move.

Por que um autor contemporâneo lança mão de convenção assim tão equívoca? Afinal de contas, citação no mundo literário e cultural é outra coisa… Propaganda enganosa? Sim e não. Sarcasmo à parte, o autor, ciente ou não, responde sempre a processo interno, prestando contas à tradição literária, cuja autoridade, arranhada embora por tantos ataques ao cânone, permanece poderosa. Real ou fantasmática, não escapamos à presença constrangedora do supremo inquisidor.

Fazem também parte do processo interno, para além do tribunal literário, as intimações do tempo, a que o autor também precisa responder. A literatura nunca é inocente…

Neste sentido as Citações do citado autor formam seu livro mais pessoal e político. Não que os outros não o sejam. Não poderiam deixar de sê-lo, se se faz de fato literatura, esse imbroglio de ficção e fixação. Mas este livro, em particular, a ser lançado em fins de novembro ou começo de dezembro neste foco — esperemos que infeccioso, da esquerda em transe, este livro convoca os demônios todos do indigitado, um por um, e quase sempre na condição de testemunhas de acusação, como poderá ver, e se deliciar, torçamos, nosso seleto júri (Airton Paschoa).

 

I.

[Das Citações, no prelo e em pelo]

Faço saber, a quem interessar possa, que o que eu queria really era ser desses escritores americanos que posam de gênios geniosos, ô coisa boa. Não talkava com ninguém, com imprensa, com tv, com jornal, com a mãe do vizinho, com a puta-que-pariu, com todo mundo correndo atrás de mim, ninguém! nem com o filha-da-puta do editor. Só falava com o agente, e por baixo da porta da cozinha, por bilhetinhos, e vocativos desbocados. Agora ai, ai do capacho se passasse uma semana sem que topasse notícia minha na mídia mundial, noticiona, estampadona, outdooradona… ai dele!

(Ou de mim, que nem consegui descer americano.)

* * *

Faço saber, a quantos interessar possa, que me falem de tudo, tudo, até das maravilhas da Nação, ou do potencial da Humanidade, ou dos feitos do Homem, tudo, tudo engulo, curvado e cagado. Só não me falem de autoestima. Então não tenho senso crítico?

O cara que possui autoestima, alto e bom som, vamos dizer um dono ou dona de ONG, que enche o espelho a toda hora, que goza consigo ou siga pelo menos três vezes por dia, manhã, tarde e noite, a pique de faltar tensão pra eventuais relações exogâmicas, esse cara ou careta é uma casamata!

* * *

Faço saber, a quantos interessar possa, que concordo, tolos somos todos, mas ser o Tolo ou o esTúpido com T maiúsculo sobrepassa as fronteiras peludas do nosso inflável e inflamável saco, cujas rugas de saco-cheio têm limite e — esticadas a mais não poder, não podem evitar que às vezes estoure, humano que é.

Devo dizer porém, em desagravo do calado e caluniado, que só o faz sem testemunhas, entre testículos. Talvez sinta, no fundo, que a tolice é parte essencial e inarredável do nosso ser-aí-aqui-ali-lá-e-acolá. Depois, por imperativo do tempo, não devemos ser liberal? e que é o liberalismo senão aturar o sacrossanto direito de estupidez universal? Religiosos, ateus, médicos, militares, magistrados, jornalistas, colunistas, cientistas, humanos ou marcianos, políticos, professores, psicos, poetas, escritores, populares, celebridades, artistas, cinéfilos, esportistas, boleiros, até bigbrodeiros, todos temos direito à expressão plena e plana da nossa planalta estupidez.

* * *

Faço saber, a quem interessar possa, que, sim, somos liberal, mas liberal radical! radical e racial. Preto pode ser tão bom filha-da-puta quanto qualquer branco. Acho engraçado que preto tem que ser vítima, bonzinho, humilde, é assim que gostamos dele, sabendo o seu lugar. Comigo não, camarão. Quero cota pra preto, sim, e cota equitativa, metade branca e metade preta, com todo mundo sacaneando todo mundo. Preto tem direito de ser tão filha-da-puta quanto a gente. E nada de condolências, camarada camarão conservadozão! Vamos sobrecarregar a terra de mais condoleezzas!1

* * *

Faço saber, a quem interessar possa, que “somos liberal” é plural de majestosa modéstia. Fica pois no singular o predicativo. Já cansei de explicar esse cetro, quero dizer, esse treco, cacete, e ninguém entende. Perdeu-se a majestade ou perdeu-se a modéstia?

Por analogia especular, pensem só num cara de antanho dizendo pra amada, única, sem igual na face carcomida da terra: vós sois belas! — BELAS!? Que aconteceu? bebeu? tá vendo duas?

Por essa razão, amiga minha, não sejais tola. Dizei apenas majestosa e modestamente a vosso fiel espelho: hoje vamos sair linda. Se disserdes “lindas”, convidai outra dama… coisa que pode refletir generosidade de vossa magnífica parte, se gosto não for de espezinhá-la — sim, somos espezenerosa! mas que pode ser um tiro em vosso lindolírio pezito.

* * *

Faço saber, a quantos interessar possa, que não passa de uma acabada besta desembestada quem acha que vida é movimento, ação, atividade, agência, e demais etctolices. Tão logo espirre do leito, se se não diagnosticar influenza perigosa, com a graça do bom Deus, ainda psicografo o Da Passiva, tratado filozourrológico que, pondo fim a todas as interrogações terrenas, explica a Vida em palavras pedestres e eqüestres, pra burro nenhum refugar.

Ubi sunt, meu santo Ogum, os obstáculos, as barreiras pra entender o óbvio uzurrante, que a gente passa por tanta coisa, tanta coisa passa pela gente, que a gente nem sabe mais se é a gente?

[continua]

1# Fica pros historiadores do futuro, que não haverá, a nota de pé de página.

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