Periferia e memória em O Sepulcro do Gato Preto

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Realizado pelo grupo Asfixia Social, curta enfrenta três esquecimentos que marcam cena brasileira: o de um jovem grafiteiro, o de um bairro operário e o de vítimas da ditadura pós-64

Por William Hinestrosa

O Sepulcro do Gato Preto será exibido nesta terça-feira (30/8), às 15h no

Festival Internacional de Curtas-metragens de São Paulo

Museu da Imagem e do Som

Avenida Europa, 158 – veja mapa

Trago inicialmente a análise de duas imagens do filme O Sepulcro do Gato Preto. A primeira é uma linha de trem abandonada, a câmera desliza sobre os trilhos e o narrador indica ali a última esperança para encontrar um parceiro desaparecido, e que segui-los era algo mais forte. “Parecia pressentimento, era como se a gente soubesse que tinha que seguir pra lá”, assim diz o narrador que junto com outros companheiros se encontra nas ruínas de uma fábrica de cimento em Perus para desvendar o sumiço de seu amigo Billy.

Na sequencia a tela escurece, entram os letreiros com o título, escurece novamente e ao abrir estamos diante da segunda imagem: uma trilha de terra e o áudio do narrador nos informando que “em memória e respeito ao Billy”, eles contarão “uma história ainda maior e que infelizmente desapareceu junto com ele”. Aqui, aos oito minutos e meio de filme, temos a informação de que não se trata de apenas um desaparecimento, há um outro. Na verdade, outros desaparecimentos serão envolvidos nesse filme, e eis seu compromisso com a memória: não podemos ficar calados perante a cultura do desaparecimento, recorrente em nossa história.

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Considero que essas imagens possuem destacadas forças narrativas. A linha do trem nos lança ao deslocamento, ao movimento de sair de um ponto e ir a outro; a trilha de terra nos apresenta um novo caminho, a opção por seguir uma nova jornada. Se pudéssemos rasgar essas imagens teríamos em suas estruturas o embarque num trem imaginário sobre trilhos abandonados, deixando para trás um filme que investigava um desaparecimento em nível pessoal, até chegar à abertura para um novo destino e caminho a percorrer. Podemos considerar que agora o filme é outro e se lança ao coletivo, adota um lado, toma partido e se torna uma voz.

Uma voz de resistência.

E assim é o espírito de seus realizadores. Kaneda é o vocalista e Fred Moreira o responsável pela produção audiovisual da banda Asfixia Social. Som ativista, pesado, hip hop, funk, ska, rock, e de letras engajadas que trazem cotidianos de vozes da(s) periferia(s). Fora a banda, eles também são compromissados com diversas ações e mobilizações culturais. É em torno desse espírito que ressalto essa inspirada passagem do filme, é o ponto em que Sepulcro se estabelece como um trabalho arqueológico e suas imagens são como pincéis em decapagem sobre resquícios de três camadas de desaparecimentos.

A primeira camada é a ignição do filme – o sumiço de Billy – que traz em si rastros não apenas para a composição de um roteiro, não é uma camada técnica. O desaparecimento de um jovem da periferia que caça espaços urbanos para exercer a sua arte do grafite é uma realidade latente e sobrevivente da opressão que há décadas cerca esses jovens. Logo no início do filme, quando sabemos que os amigos de Billy sacaram uma importante pista sobre o desaparecimento do parceiro, o narrador nos conta:

“Naquela hora foi um corre corre do caramba, a gente pegou as nossas coisas e saiu pra delegacia, crente que podia ajudar. Mas na moral, era muita ingenuidade a nossa achar que alguém estava ligando para o Billy.”

Essas palavras são narradas sobre cenas de um grupo de jovens reunidos, debatendo sobre um assunto e que em certo momento se revoltam, os ânimos estão à flor da pele. Não está clara a exata relação desses jovens com Billy, mas o que conta aqui é a expressão imagética e narrativa para dar conta de uma realidade onde, fora daquele círculo, Billy, um jovem da periferia, não interessava a ninguém. Sim, isso é revoltante.

A partir desse momento o filme se desloca para Perus e acompanhamos a busca de Billy pelas ruínas da fábrica de cimento. Por alguns poucos minutos o filme se adota um caráter didático nos apresentando o que foi aquela fábrica na história de São Paulo e do país. Na verdade, enxergo essa passagem como uma breve contextualização para podermos avançar à segunda camada, que resulta da decapagem feita na transição dada pelas duas imagens que citei acima.

Gato Preto, comunidade operária e de luta, resiste. O movimento de Kaneda e Fred para dentro de Gato Preto é um propulsor narrativo. Como arqueólogos vorazes, eles se debruçam sobre os escombros e a câmera se torna uma espátula e um pincel. A partir desse ponto, o solo da luta contra a injustiça social vai sendo escavado. Estamos na segunda camada e aqui destaco o valor do trabalho de memória desse filme, o qual não é está somente no registro e informação acerca do que se passa nas batalhas contra o desaparecimento de Gato Preto, e sim também na ação de posicionar o microfone para os principais protagonistas dessa luta.

Quando o filme chega na vila de Gato Preto, o narrador dá lugar às vozes dos moradores, e em seguida temos uma imagem com o microfone ali em cima da mesa e devidamente direcionado. Compreendo essa imagem como um mecanismo que tira o equipamento de áudio da sua especificidade técnica e lhe atribui um status de elemento narrativo aderente à posição discursiva do filme. Outra imagem que enfaticamente nos deixa clara essa aderência é quando vemos pouco depois um dos diretores segurando o microfone. O braço esticado e os olhos fixos naquelas vozes é um ato significativo de responsabilidade perante uma memória que Sepulcro busca retirar das margens da nossa história recente.

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Na terceira camada de desaparecimento, o narrador do filme nos conta que ao lado da fábrica de cimento em Perus foi construído o cemitério Dom Bosco, que nos anos 70 recebeu corpos de opositores da ditadura militar que foram assassinados em seus porões para serem enterrados como indigentes nesse cemitério. Qual a força disso em Sepulcro? É o ponto de costura para refletirmos sobre a cultura do desaparecimento. É como uma relíquia arqueológica devidamente (ou literalmente) retirada do solo, acondicionada em um saco plástico, etiquetada, catalogada e enviada a um laboratório.

Billy, Gato Preto, trabalhadores da fábrica de cimento, das pedreiras de Perus e Cajamar, opositores da ditadura militar. Uma região e seus desaparecimentos. Infelizmente a cultura do desaparecimento expande-se no tempo e no espaço para além dos limites de Perus e Cajamar. Quando o narrador nos diz “mas na moral, era muita ingenuidade a nossa achar que alguém estava ligando para o Billy”, temos aí o recado bem dado.

Fred e Kaneda fazem o oposto com Gato Preto, mostram que é possível. Eles não adotam o silêncio, e por essa razão, a voz é um instrumento potente em Sepulcro, tanto na narração quanto nos depoimentos dos moradores. Eles escavam e que isso nos motive sempre. A última voz do filme é feminina, a moradora de Gato Preto deixa claro: “Ninguém, que fosse ser retirado daqui hoje, ia se conformar”. A imagem seguinte e que encerra o filme são escombros. Não nos conformemos, pois há muitos escombros e solos para serem escavados.

“O SEPULCRO DO GATO PRETO”

O filme possui duas versões, uma de 25 minutos e outra de 52 minutos, para esse texto utilizei como referência a de menor duração.

(2015, SP)

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=onA_bwMmOGI

Direção, pesquisa, roteiro, edição, captação de som: Frederico Moreira, Kaneda Asfixia

Produção: Oloeaê Filmes

Produção Executiva: Patrício Abe Lagos

Texto e narração, direção musical: Kaneda Asfixia

Finalização e correção de cor: Frederico Moreira

Para saber mais do filme: www.facebook.com/osepulcrodogatopreto

Para saber mais do Asfixia Social: http://asfixiasocial.com.br/

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