O Sniper Americano e o de Bagdá

Muito mais instigante que personagem de Eastwood é atirador legendário que enfrentava invasores do Iraque. Sua história expõe fracasso militar dos EUA

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O “sniper de Bagdá” segundo uma das narrativas a seu respeito que circulam no Iraque

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Por Pepe Escobar | Tradução Vila Vudu

A história de Chris Kyle, o “American Sniper já está perpetuada em celuloide, gerando mais de 300 milhões de dólares de bilheteria. Mas o Exército Islâmico no Iraque também tem seu homem-lenda: é “Juba – o Sniper de Bagdá”.

Um tribunal no Texas declarou o ex-Marine Eddie Ray Routh culpado de crime capital. Em 2013, Routh matou a tiros o ex-membro das forças de elite da da Marinha norte-americana (SEAL) Chris Kyle, o homem cuja história está contada em American Sniper – livro, depois adaptado para filme blockbuster pelo diretor-ícone de Hollywood, Clint Eastwood. O governador do Texas, também registrou sua sentença pós-veredicto e tuitou “JUSTICE!

Nada adiantou que os advogados de Routh – e a família dele – insistissem que o homem sofria de psicose, provocada por desordem mental por estresse pós-trauma [PTSD, em inglês]. Os procuradores do estado do Texas em duas pinceladas apagaram todas as alegações – e “provaram” que os surtos de PTSD em Routh aconteciam por ação de álcool e maconha.

American Sniper – o filme – tinha tudo para virar fenômeno de cultura pop nos EUA. Kyle, representado por Bradley Cooper, é Dirty Harry em uniforme de combate – especialista em desumanizar o “inimigo”. O “inimigo” é gente que defende a própria terra, contra uma força de invasão/ocupação.

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Chris Kylle, o atirador que inspirou o personagem central do filme de Clint Eastwood

Não há qualquer justiça poética, e o Matador também acaba, ele mesmo, desumanizado: é diagnosticado doente de PTSD.

Numa cruel virada do destino, acabou ele mesmo também destripado, em casa, tiro a queima-roupa, por alguém que ele tentava ajudar. O assassino, adivinhem: também soldado e também doente de PTSD.

Para cada soldado dos EUA morto em 2014, nada menos que 25 veteranos cometeram suicídio. Pelo segundo ano consecutivo, o Pentágono perdeu mais soldados por suicídio que em combate. Ah, mas no Texas, isso é roteiro para mariquinhas.

Kyle, conforme sua própria versão, matou mais de trezentos, como atirador especialista da Equipe 3 dos SEALs da Marinha. Depois que deixou o exército, passou a se dedicar a dar atendimento a veteranos de guerra doentes de PTSD. O que fazia? Claro: levava os doentes para dar tiros.

Clint Eastwood é homem de mais nuanças do que as que lhe rendem créditos e elogios – e do que ele deixou ver nas entrevistas estudadamente rasas e ocas que deu ao longo dos anos. Pode bem ser que, apelando aos instintos mais básicos, tenha conseguido meter no altar mais um herói norte-americano, para mais bem escrever um filme antiguerra.

O que nos leva de volta ao verso radical da moeda do sniper norte-americano: Juba.

Mira para um único solitário tiro

“Juba” era o apelido dado pelas forças norte-americanas de invasão/ocupação  a um fenômeno pop iraquiano; um atirador de elite que se tornou legendário pelas habilidades, ao sul de Bagdá. Perfeito fantasma. Ninguém jamais soube seu nome nem lhe viu o rosto. Ninguém jamais soube, sequer, se era iraquiano ou não.

Numa história em quadrinho do brasileiro Latuff, "Juba", o atirador iraquiano misterioso

Numa história em quadrinho do brasileiro Latuff, “Juba”, o atirador iraquiano misterioso

Juba converteu-se em lenda por todo o mundo árabe, porque só atirava contra soldados da “coalizão” – como eram designadas as tropas de invasão/ocupação, sempre pesadamente protegidos em veículos blindados,  roupas e capacetes à prova de balas. Tradução: Juba só matou norte-americanos que haviam sido convencidos – pelo Pentágono e pela máquina da imprensa – que estavam “libertando” o Iraque das garras de Saddam, que seria aliado da al-Qaeda que “nos atacou dia 11/9”. Ouvi exatamente isso diretamente da boca de mais de um soldado – sem ironia.

Juba atirava de distâncias superiores a 200m – façanha de que o sniper norte-americano muito desejaria poder dar conta com sucesso.

Juba era homem de paciência infinita e tiro devastadoramente preciso. Só atirava uma vez – e mudava de posição. Jamais atirou um segundo tiro. Mirava as mínimas frestas na armadura corporal dos uniformes, a parte inferior da espinha dorsal, as costelas ou acima do tronco. Nenhum atirador especialista dos EUA jamais conseguiu rastreá-lo.

Assim se explica, em resumo rápido, por que Juba virou lenda urbana em Bagdá, no triângulo sunita e além dali. Virtualmente certo, só, que era membro de uma organização hoje quase desconhecida: o Exército Islâmico no Iraque (jaysh al islāmi fī’l-‘irāq). Longe de ser jihadista-salafista era, em meados dos anos 2000, o grupo número 1 da resistência contra os norte-americanos, promovido pelo ex-vice-presidente do Iraque Tariq al-Hashemi. Todos eram ex-Ba’athistas – sunistas, xiitas e curdos trabalhando juntos. Juba também – supunha-se que fosse sunita. Mas nem isso foi jamais totalmente confirmado.

Em meados dos anos 2000, a resistência era muito popular – porque a “libertação” obrada pelos EUA significava mais de 50% da população do Iraque em estado de subnutrição; um de cada três iraquianos literalmente passava fome; e pelo menos 50% de toda a população vivia em abjeta pobreza.

Por volta do fim de 2005, o Exército Islâmico no Iraque distribuiu um vídeo de 15 minutos, Grandes Tiros de Juba. Em meados de 2006, circulavam números disparatados sobre seu real desempenho. Um dos feitos de Juba foi dar cabo de uma equipe de quatro batedores dos marines em Ramadi, no “triângulo da morte”, cada um deles com um único tiro na cabeça.

Os atiradores de elite dos EUA trabalham sempre em equipes de no mínimo dois: um atirador e um localizador. O localizador tem de ser extremamente experiente, capaz de fazer todo o complexo cálculo para avaliar, por exemplo, as variações de vento e coeficientes de arrasto. Juba não; sempre foi atirador solitário.

Rebelde existencialista (mas armado com um Dragunov)

O Exército Islâmico do Iraque gostava de jactar-se de que Juba – e outros atiradores especialistas – eram treinados essencialmente pelo livro The Ultimate Sniper: An Advanced Training Manual for Military and Police Snipers (Paladin Press, 1993; edição ampliada em 2006), escrito pelo atirador aposentado do Exército dos EUA, John Plaster.

Que fabuloso enredo de história pós-Guerra Fria! As táticas eram tomadas do invasor (norte-americano); mas a arma de escolha, preferencial, imbatível, era russa.

O “ninho” costumeiro de Juba – para onde se recolhia depois de uma matança – era sempre decorado com um sortimento de acolchoados de cama, usados para abafar o som de seu sniper rifle Dragunov, também conhecido como SVD, o seu rifle Dragunov semiautomático para atiradores de elite, desenhado por Evgeniy Dragunov na ex-URSS no final dos anos 1950s. O Dragunov sempre foi tido em como o melhor rifle de precisão do mundo para finalidades militares concebido para atiradores de elite. Quer dizer: se se consideram as relações entre a URSS e o Iraque de Saddam, não surpreende que os militares do partido Ba’ath fossem íntimos conhecedores-operadores do Dragunov.

A marca registrada de Juba, e sua “lembrança”, também tornou-se tão legendária quanto a persona de “homem invisível”; um único cartucho, e umas poucas palavras sempre em árabe: O que foi roubado em sangue, só pode ser pago em sangue. Sniper de Bagdá.

Entre o final de 2005 e início de 2006, quando acompanhei de perto a resistência iraquiana, flertei com a ideia de escrever um roteiro de filme sobre Juba. Para muitíssimos iraquianos, foi uma espécie de herói estilo Camus; rebelde existencialista (mas armado com um Dragunov). No final, descartei a ideia, quando me dei conta de que só um iraquiano saberia perscrutar a personalidade do Sniper de Bagdá.

Hoje, o Sniper de Bagdá talvez só sobreviva como fantasma de uma lenda urbana mutilada. A própria Bagdá mudou de status, de majoritariamente sunita, para majoritariamente xiita – e seus novos medos estão centrados no falso Califado do ISIS. O sniper dos EUA, por seu lado, corre o planeta como uma celebridade digital, embora a direita norte-americana proteste a altos brados pelo filme de Clint Eastwood, nem Bradley Cooper, terem recebido Oscar algum. Bom para todos verem – mais uma vez – que, desde o Vietnã, o único local onde o “Império do Caos” vence suas guerras é Hollywood.

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