Chéri à Paris: O olhar dos outros

“Quer dizer que um dia você acordou: ‘que sol maravilhoso. Vou tomar um café, uma ducha e depois virar gay'”

.

Por Daniel Cariello*, em Chéri à Paris

O texto a seguir, eu escrevi para um concurso francês de roteiros de curta-metragem do qual participei há cerca de 3 anos. O nome do concurso era Le regard des autres, o olhar dos outros, e o tema era homofobia. O vencedor teria o filme rodado e exibido em cinemas e na televisão locais.

Na condição de estrangeiro, decidi tratar do assunto mostrando que a discriminação sofrida pelos  homossexuais (ou bi, ou trans etc) é, no fundo, muito parecida com a que existe contra os imigrantes. E se baseia na intolerância que temos com o que não se parece conosco.

Se eu ganhasse, iria insistir para ter o Paulo César Pereio no papel do estrangeiro. Canalha por canalha, sou muito mais ele do que o Gérard Depardieu.

Dois amigos estão sentados em um café. Um é francês (FR), e o outro, estrangeiro (ES), com sotaque. O garçom chega. Um amigo pergunta pro outro.

FR – Quer o quê?

ES – Um café.

FR – Dois cafés. – Diz pro garçom, que sai.

ES – E aí, tudo bem?

FR – Tudo.

ES – Tá lá ainda?

FR – Lá onde?

ES – Naquele buraco que você trabalha.

FR – Porra, precisa lembrar disso agora?

ES – Cara, tem séculos que te falo pra você largar aquela merda.

FR – Eu sei, eu sei. Mas você acha que é fácil arrumar um emprego decente?

ES – E aquilo lá é decente?

FR – Pelo menos dá pra pagar a cerveja.

ES – Considerando o tamanho de vossa pança de chope, então parece que o senhor pelo menos está ganhando bem. – Vira o pescoço e fixa o olho na barriga do amigo.

FR – Filho da puta…

Os dois riem.

ES – Por que você não larga tudo e monta uma barraca de crepe?

FR – Hã?

ES – Uma barraca de crepe. Crepe de queijo, de champignon, crepe suzette. Essas porcarias. Turista adora.

FR – Eu sou uma catástrofe na cozinha. Até ovo frito eu queimo.

ES – Junta a grana dessas cervejas aí – aponta para a barriga do outro – e contrata alguém pra trabalhar pra você. Quando o diabo criou o capitalismo, as regras foram bem definidas.

FR – De que merda você tá falando?

ES – Não sou eu. Max falava isso.

FR – Max?

ES – É. O cara que inventou essas teorias de comunismo.

FR – Marx. Karl Marx.

ES – Ele mesmo. Ele dizia que quem sabe, trabalha. Mas quem tem, manda. – Faz o sinal de dinheiro, quando diz “quem tem”.

FR – Você é foda…

Os dois riem. O garçom traz os cafés.

ES – Viu o jogo domingo?

FR – Vi.

ES – E esse time, hein?

FR – Porra. Os caras não sabem diferenciar uma bola de futebol de um taco de sinuca.

ES – E você? Sabe qual é a diferença entre uma bola de futebol e um taco de sinuca?

FR – Hã?

ES – Senta em cima dos dois que você vai descobrir.

O estrangeiro ri. O outro fica sem graça.

FR – Sabe, tô pra te contar uma coisa.

ES – Ganhou na loto e vai montar um harém em Ibiza?

FR – Não, cacete. É sério.

ES – Ih, que foi?

FR – Não tô mais com a Marie.

ES – Não?

FR – Não. Tô com outra pessoa.

ES – A Claire?

FR – Não.

ES – A Véronique? Vai dizer que pegou a Véronique?

FR – Na verdade, não é uma mulher.

O estrangeiro abre o olho grande e cola no fundo da cadeira.

ES – O que você quer dizer?

FR – Quero dizer isso mesmo que você está pensando.

ES – Virou bichona? Tá enfornando o robalo? Sentando na cobra?

FR – Porra, não dá pra falar sério com você.

ES – Não dá pra falar sério é com você. Que história é essa de sair liberando o brioco agora?

FR – Não é isso.

ES – É o que, então? É amor? Vai dizer que tudo o que você sempre quis na vida foi enroscar seu bigode com outro?

FR – Nem tenho bigode.

ES – Você entendeu.

FR – Eu tô namorando o Hugo, que te apresentei um tempo atrás.

ES – O Hugo, aquele seu amigo?

FR – Já é um pouco mais que amigo…

ES – Ficou doido? Namorando um homem???

FR – Fala baixo. Tá chamando a atenção.

ES – Você dá o rabicó e eu é que quero chamar a atenção?

FR – Você não entende nada mesmo.

ES – Entendo sim. Entendo que você tá louco. Porra, se fosse o Jacques, que gosta de pintar cerâmica… Ou o Julien, que inventou de fazer aula de dança… Mas você? Você vai ao estádio e toma cerveja. Até boxe eu já te vi assistindo na TV. Boxe!

FR – Isso não se escolhe. Você simplesmente vai percebendo que é assim. E um dia você resolve admitir pra si mesmo.

ES – Quer dizer que um dia você acordou: “ah, o sol está maravilhoso. Vou tomar um bom café, uma ducha e depois virar gay”.

FR – Deixa pra lá. Achei que podia contar com você, meu melhor amigo.

ES – E eu, que agora nem sei mais dizer se você é meu amigo ou minha amiga?

Silêncio na mesa. O garçom chega e pergunta se querem mais alguma coisa. Ninguém responde.

ES – Fala que você tá de sacanagem, fala. Diz que é brincadeira.

FR – O que é que muda?

ES – Muda tudo. A gente nunca mais vai poder sair de casal. Eu com a minha namorada e você com a sua. Ir pra um cinema, um restaurante.

FR – A gente nunca fez isso. Você nunca tá namorando.

ES – Nunca fez e nunca vai fazer. Pior ainda. E pra quem eu vou contar das mulheres que eu pego? Pra quem?

FR – Porra, pra mim, claro.

ES – Mas você é gay, cacete!

FR – E você é um idiota. Sou eu ainda. A mesma pessoa, ó. – Diz isso e aperta o ante-braço do amigo, que faz um olhar de estranhamento.

ES – Ô…

FR – Quer saber? Vou nessa.

Ele levanta, joga umas moedas na mesa e sai. O estrangeiro fica e chama o garçom.

ES – Uma cerveja gelada, por favor.

GR – O quê?

ES – Uma cerveja gelada.

GR – Desculpa, não entendo o que você quer.

ES – Falei que quero uma cerveja.

GR – O senhor poderia fazer a gentileza de falar francês?

ES – Olha, vá à merda. –  Ele sai também. O garçom mostra que entendia, e responde.

GR – Sua mãe não te deu educação não?

O estrangeiro sai à rua, olha para os lados, e vê seu amigo já meio longe. Ele corre para alcançá-lo.

ES – Marc, Marc.

FR – O que você quer agora? Vai perturbar outro, vai.

ES – Tá a fim de ver o jogo no bar? A cerveja é por minha conta.

FR – Hã?

ES – Mas em outro. Naquele lá as pessoas são muito intolerantes.

Marc sorri e coloca a mão no ombro do amigo, que olha meio atravessado, mas depois relaxa e coloca a mão no ombro do outro também. Eles vão andando de costas pra câmera.

FR – A gente tem que ganhar esse jogo.

ES – Basta eles jogarem como homens.

FR – Ô…

ES – Brincadeira, porra.

(*) Daniel Cariello é colaborador regular do Outras Palavras. Escreve a crônica semanal Chéri à Paris,

Leia Também:

Um comentario para "Chéri à Paris: O olhar dos outros"

  1. Nondtop disse:

    Muito bom!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *