O legado simbólico do rap Da ponte pra cá

Embora de grande relevância estética, música de Brown simboliza um aprisionamento. Estarão criadas as condições para superá-lo?

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Por Antonio Eleilson Leite | Imagem: Helena Coelho

(Parte final de ensaio sobre o rap “Da Ponte pra cá”, dos Racionais MCs e as transformações vividas pelas periferias brasileiras, seus habitantes e artistas. Leia aqui o primeiro e segundo segmentos)

Como foi dito anteriormente, “da ponte pra cá” tornou-se uma expressão que entrou no vocabulário do rap nacional e da literatura da periferia paulistana em particular, tornando-se uma designação que identifica aqueles que moram na periferia, principalmente a periferia da Zona Sul de São Paulo. Uma expressão da cultura, uma metáfora de elevado sentido poético. Daquelas expressões que dispensam maiores explicações. Da ponte João Dias para cá, pronunciando a partir do Capão Redondo, fica por exemplo o Centro Empresarial, conglomerado de escritórios de grandes empresas nacionais e multinacionais. Entretanto, não há dúvidas de que a designação refere-se ao Fundão, muito pra cá do local onde que estão as sedes das corporações. Por isso o sentido é simbólico. Fosse objetivo, geográfico apenas, estaria incorporando a alta classe média que se instalou daquele lado da ponte.

Mas a o termo “ponte”, isoladamente, também tem sua força poética. Na cidade de São Paulo tem um acento muito particular, posto que há 34 pontes sobre os rios Tietê e Pinheiros, que margeiam o Centro Expandido, separando a periferia. A Ponte João Dias é apenas uma delas. A Ponte é um elemento que ao mesmo tempo une e separa. Permite o ir e vir em um patamar elevado do chão sobre, necessariamente, um obstáculo do terreno que impede o curso de uma via terrestre. Determinadas situações geográficas impulsionam este tipo de solução arquitetônica e urbanística e acabam por caracterizar algumas cidades. No Brasil, a ponte que une Rio de Janeiro a Niterói é uma das maiores do gênero sobre o mar. Em Tocantins, uma ponte de cerca de 12 km cruza o Rio Araguaia. No Recife, várias pontes criam vias num arquipélago que é a capital pernambucana. Florianópolis é uma ilha que foi durante muitos anos ligada pela ponte Hercílio Luz, inspirada numa ponte de San Francisco na Califórnia, Estados Unidos, país onde o berço do rap é Nova York, onde fica a Ilha de Manhattan, acessada por diversas pontes.

Ou seja, Ponte é algo muito emblemático no espaço urbano. É um termo que por si, confere um sentido simbólico de peso. Em 2004, o rapper GOG, contemporâneo dos Racionais, artista da periferia do Distrito Federal, compôs “Eu e Lenine (A ponte), um rap que aborda com afiada crítica a construção de uma ponte em Brasília sobre o Lago Paranoá. GOG baseou-se na canção “A Ponte, de Lenine, daí o título do rap. O compositor pernambucano por sua vez exaltou, em sua canção, as inúmeras pontes do Recife, elementos que se incorporaram à cultura da capital pernambucana. Mas o rapper brasiliense fez referência aos Racionais para justificar sua inspiração: Eu já atravessei a Ponte do Paraguai / Um filme inspirou a ponte do rio que cai / É sucesso em Campinas e na voz dos Racionais / Mas a ponte da capital é demais!1. A da Capital Federal realmente não separa rico de pobre, como acontece com a Ponte João Dias. Os pobres do Distrito Federal estão todos nas cidades satélites conformando o espaço urbano mais segregador do Brasil que é Brasília, mas vale a referência aos Racionais como influência.

O Sarau da Cooperifa, maior e mais antigo sarau literário da periferia paulistana, criado em 2001 no Taboão da Serra e migrado dois anos depois, para o bairro de Chácara Santana em São Paulo, vizinho ao Parque Santo Antônio na periferia da Zona Sul, ostentou durante algum tempo o bordão: “Nóis é ponte e atravessa qualquer rio” verso do poeta Marco Pezão, jornalista que, ao lado do poeta Sergio Vaz, criou este Sarau2. Novamente a metáfora da ponte serve de inspiração para exaltar os que estão na periferia e, neste caso, expressar a altives que lhes permite trafegar tanto a Ponte João Dias quanto qualquer outra ponte que os separe de um lugar que se deseja alcançar. Sendo simbólico o sentido, este lugar pode ser não só um determinado território, mas também uma instância intangível: dignidade, cidadania, poder, dimensões que estão fora do alcance dos marginalizados mas nem por isso impossíveis de serem alcançadas. Se um rio é o obstáculo, juntos (“nóis é ponte”) é possível superá-lo.

Este verso de Marco Pezão, assim como o rap de GOG, que é muito ligado à Cooperifa, provavelmente contribuiu para assentar a expressão “da ponte pra cá “ no imaginário coletivo dos poetas que se reúnem no Sarau da Cooperifa e em outras quebradas do Brasil. Noves fora o peso melancólico da letra, como concluí, o rap Da ponte pra cá, ficou gravado na memória dos que o apreciaram ao longo desses anos como uma marca simbólica que confere significado de pertencimento a quem mora na periferia.

Passados dez anos dessa composição, porém, o próprio Mano Brown admite que a dicotomia dos lados da ponte não faz mais tanto sentido ou pelo menos tem de ser relativizada. Diz o autor em recente entrevista dada à Revista Rap Nacional3:

A pior coisa que eu criei foi este estigma, que eu nem sei se eu criei, mas sou responsável, que até o RAP carrega certo estigma, acho que foi a pior coisa que eu criei. Ter uma certa ignorância e uma cegueira também, eu não tolero algumas coisas. Eu sou da outra geração, então quando a gente criou o símbolo do Racionais, no fim dos anos 80, era um outro mundo. A dívida externa não tinha sido paga. Não tinha eleito o Lula ainda, não tinha Metrô no Capão, um monte de coisa não tinha acontecido, não tinha eleito um presidente negro nos EUA, o Barack Obama. O Brasil não tinha uma presidente mulher, não tinha nem asfalto na nossa quebrada. Quando criamos o Racionais, era um outro mundo, então não tem como você esticar o chiclete 25 anos falando das mesmas coisas como se elas não tivessem mudado. Seria mentira, ia tá maquiando uma realidade, que a nova geração está aí para mostrar. (…) Então, de 88 pra cá são 24 anos, o mundo mudou muito, a música tem que acompanhar a mente do jovem, tem que ir até a massa, até a mente da massa”

O sentido de afirmação que a o rap Da ponte pra cá sugere sustenta-se na negação, confina os miseráveis e não fortalece a frátria dilacerada por seus conflitos e falta de perspectivas. Maria Rita Kehl apontou o problema que Mano Brown hoje identifica: “Se o rap se propõe como uma linguagem discriminatória em relação aos de fora, o esforço civilizatório dos Racionais MC’s pode ser inútil, e a frátria, desgarrada do corpo social, transforma-se em gangue”4. Talvez este rap, ainda que seja uma obra estética de grande relevância, tenha esgotado sua força temática, não pela superação dos problemas sociais nele narrados, mas em função do tom sisudo e discriminatório, que, ao meu ver, é a expressão do “estigma” mencionado acima por Mano Brown. Em entrevista dada para a mesma publicação Rap Nacional, em maio de 20125, Edi Rock, MC de semblante sempre tenso e riso raro, assumiu também a marra do Racionais na seguinte declaração:

Imagino o enredo (uma letra de rap) , se for mais sisuda é a cara dos Racionais. Outras meio moderninhas, diferentes demais, eu já acho que não entra no Racionais. Acontece dessa forma, têm músicas que são bem pessoais, diferentes. Eu arrisco muito, eu acho que o Racionais não pode arriscar tanto”

No fim das contas, Da ponte pra cá, simboliza o aprisionamento ao qual se referem, inquieto, Mano Brown e, de forma conformista, o Edi Rock. Um rap que congelou uma visão de mundo que não se sustenta nem pelo seu próprio autor, mas que, certamente, teve um papel fundamental para marcar uma época e um estado de coisas na sociedade paulistana e brasileira encapsulada numa obra bem sucedida, nos termos em que trata Walter Garcia: “Quando bem sucedida, a forma adquire valor intrínseco por nos oferecer entretenimento, atrativo, prazer, junto de conhecimento sobre a linguagem da própria obra e sobre a vida social”6

* Antonio Eleilson Leite edita Estéticas das Periferias. Para ler edições anteriores da coluna, clique aqui.

> Leia também as 35 edições de Cultura Periférica, a seção que Antonio Eleilson Leite publicou, entre outubro de 2007 e dezembro de 2008, no Caderno Brasil do Le Monde Diplomatique.

Bibliografia

ROSENFELD, Anatol, O teatro Épico, (pag. 22), Perspectiva, São Pàulo, 6ª edição, 2011

PASINI, Leandro:Mano Brown: Poesia e Lugar Social, in; Cultura e Pensamento, nº 3, dezembro de 2007, Ministério da Cultura/FAPEX, Brasília/Salvador.

BUARQUE DE HOLLANDA, Heloisa: Escolhas, uma autobiografia intelectual, Rio de Janeiro, Lingua Geral, Carpe Diem, 2009

KEHL, Maria Rita, A frátira órfã: o esforço civilizatório do rap na periferia de São Paulo. In: ____ (org.) Função fraterna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000,

FERRÉZ, Capão Pecado, São Paulo, objetiva, 2010

GARCIA, Walter, Sobre uma cena de Fim de Semana no Parque, do Racionais MC’s. In: Revista Estudos Avançados, volume 25, 71, janeiro/abril 2011– Dossiê São Paulo Hoje, IEA, USP

____________, Diário de um detento: uma interpretação. In: NESTROVSKI, Arthur (org), Lendo Música. São Paulo: Publifolha, 2007

GOG – A Rima Denuncia, Global Editora, São Paulo, 2010. Rap que faz parte do CD Tarja Preta de 2004.

Entrevistas com Edi Rock e Mano Brown

Revista Rap Nacional, nº 4, maio/junho de 2012, São Paulo

Revista Rap Nacional, nº 6,Ano 1, outubro/novembro, 2012, São Paulo, pag. 46

1GOG – A Rima Denuncia, Global Editora, São Paulo, 2010. Rap que faz parte do CD Tarja Preta de 2004.

2Este verso estava impresso num bâner que ficava exposto no Bar do Zé Batidão, local onde acontece o Sarau. Desde 2007, porém, não está mais lá. Mas o verso está publicado na contracapa do CD Sarau da Cooperifa de 2006 lançado pelo Instituto Itaú Cultural

3Revista Rap Nacional, nº 6,Ano 1, outubro/novembro, 2012, São Paulo, pag. 46

4KEHL, Maria Rita, op. Cit, pag. 123

5Revista Rap Nacional, nº 4, maio/junho de 2012, São Paulo

6GARCIA, Walter, Diário de um detento: uma interpretação. In: NESTROVSKI, Arthur (org), Lendo Música. São Paulo: Publifolha, 2007, (pag. 188) 

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