O encenador e o teatro do nosso tempo

Que perdemos com morte de Fernando Peixoto, cujo teatro, influenciado por Brecht, abriu-se ao diverso, ao contraditório, à auto-reflexão permanente

 

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Que perdemos com a morte de Fernando Peixoto — cujo teatro, influenciado por Brecht, abriu-se ao diverso, ao contraditório, à auto-reflexão permanente

Por Theotonio de Paiva, editor do Caderno Ensaios

No início da semana passada, leio desolado comovente texto de Ulysses Cruz, publicado na Folha de São Paulo [disponível em Conteúdo Livre] sobre a morte do ator e diretor de teatro, Fernando Peixoto.

O encenador gaúcho, morto no dia 15 de janeiro, foi seguramente um dos mais importantes e atuantes pensadores do teatro brasileiro. Dotado de uma rara capacidade de se envolver com segurança e inteligência nos aspectos práticos e teóricos dessa atividade tão complexa, quanto multifacetada, Fernando Peixoto conseguiu, em seus artigos, ensaios e espetáculos, pesquisar e formular as mais representativas questões da cena contemporânea.

Nesse sentido, vale a pena recordar o quanto foi marcado por uma capacidade de pensar dialeticamente os diversos processos históricos. Assim, ao se constituir numa das maiores autoridades do teatro de Brecht, aqui no Brasil, sendo responsável por livros, encenações, artigos e um número incansável de traduções de peças e textos teóricos do dramaturgo alemão, diga-se de passagem, condição que lhe marcou indelevelmente a sensibilidade, Fernando Peixoto era incapaz de virar as costas para as demais experiências artísticas que se faziam. O contraditório de algum modo o fascinava.

Lembro de um pequeno texto introdutório sobre o teatro em que deslindava com maestria as assimilações e influências, geradas ao longo do século XX no universo das diversas pesquisas e propostas cênicas, tanto no campo da dramaturgia, encenação e trabalho do ator. Cabe salientar que parte significativa dessas experiências, como é natural dentro do conjunto de quaisquer trabalhos no campo da cultura, traziam, dentro da própria concepção inicial, o embrião do confronto.

Não é difícil entender essa dinâmica se nos ocorre que uma expressão artística se orienta como eixo antagônico a uma determinada linha de criação anteriormente constituída.

Ora, Fernando Peixoto conseguia entender esse processo como algo maior. E se desdobrava em análises meticulosas sobre o fenômeno teatral, suas peculiaridades e limites.

Notava que as fusões de linguagens, as experiências e propostas, seriam procedimentos encontráveis, por vezes, dentro de um projeto de teatro específico. E estariam presentes ora num grupo teatral, numa companhia de longa duração, ou ainda na assinatura de um encenador que, sem nenhuma redundância, se voltasse à construção de um projeto mais autoral. Mas não parava aí. Chamava-nos a atenção para uma outra particularidade dessa natureza da criação do espetáculo: a comunicação que se acentuara, na virada do século XIX para o seguinte, quando a roda do tempo giraria com muito mais furor.

Identificava que, por conta das viagens dos espetáculos, através de navios ou estradas de ferro, pela disseminação dos escritos de diretores, autores e dramaturgos, as influências díspares, presentes cada vez mais nas últimas décadas, seriam encontradas, em alguns casos, dentro de um mesmo e único espetáculo.

Desse modo, sentia-se estimulado a entender como princípios e técnicas poderiam ser visceralmente negados, quando pouco antes pareciam essenciais e indispensáveis. Movimentava-se para compreender essa arte em sua natureza autofágica. E assim frequentemente distinguia o quanto esse processo transformava a narrativa, as técnicas de interpretação e as formas de concepção e encenação do espetáculo.

Consciente de tais processos, não se deixava enredar por um possível reducionismo estético que renegaria parte considerável da dimensão da atividade teatral. E ia além. Procurava discernir e compreender as diversas transformações que o teatro vinha sofrendo ao longo de sua história e, em especial, nos últimos tempos, com as consequentes definições e redefinições de sua função social. Em resumo: se permitia compreender as alterações profundas que balizaram o teatro do seu tempo, cuja expressão mais definidora talvez tenha sido a transformação do significado mesmo da atividade teatral.

E especulava a partir de reflexões e conceitos complexos, apesar de conseguir traduzi-los de forma clara. Em diversas ocasiões, o seu texto soava impregnado de forte cunho pessoal. Ambas as características seriam condicionadas por uma militância artística que a sua geração conseguira ascender a uma ação intelectual profundamente comprometida com a transformação do mundo. Dessa maneira, não foi à toa a escolha de Ulysses Cruz para vê-lo interpretar Sartre, na sua encenação da peça Cerimônia do adeus, de Mauro Rasi. Segundo o próprio Cruz, a personagem exigia um ator com credibilidade intelectual. Entende-se melhor assim a própria subjetividade entranhada no ser político.

E essa qualidade da sua geração revela um aspecto decisivo para compreender a obra desse homem de teatro. Como alguns artistas do seu tempo, conseguia compreender a função social do teatro como algo que se apresenta de tempos em tempos a exigir um questionamento tão perturbador que se corre o risco do imobilismo e da resignação. Numa arte que jamais seria a mesma, pois determinada por um outro nível de consciência, esse aspecto foi observado de modo notável por Peixoto. Artistas e público se viram na condição de provocarem substanciais alterações na maneira de realizar (se entendermos o olhar, a leitura, como um ato de realização) e conceber o próprio teatro.

Plantado no chão do mundo sem esquecer as possibilidades reais que o imaginário lhe oferecia como matéria-prima da criação, esse artista e intelectual gaúcho, aliava a sua extrema capacidade de análise a um humor sutil e a uma escrita treinada em anos de jornalismo. Egresso do antigo Teatro Oficina, no qual participou intensamente de algumas das suas mais célebres montagens, Peixoto romperia com o grupo e se alinharia a um projeto de teatro cujo engajamento acreditava melhor orientado.

No entanto, uma grande generosidade parecia inspirar a sua capacidade de entender as matrizes paradoxais das nossas formações sociais e aqueles aspectos mais humanos. Num artigo sensível, se não me falha a memória, publicado por ocasião do retorno de Zé Celso ao Brasil, ou quando do lançamento do filme 25, do próprio Zé e Noilton Nunes, repensaria e se deixaria impressionar vivamente pelas admiráveis experiências que o antigo companheiro de grupo conseguira desenvolver fora do país. A história do outro passava a ser objeto de reflexão e sucessivos balizamentos da sua própria história.

Por último, lembro, quando ainda era ainda um estudante secundarista, sobre a expectativa que a cidade inteira parecia guardar com a estreia de Calabar, o elogio da traição, de Chico Buarque e Ruy Guerra. A obra se pretendia de grande comunicação – a peça era um musical com uma irreverência típica do período, e algumas músicas vieram a fazer parte daquilo que de melhor aquela época produziu em termos de consciência política e artístico-musical. Calabar, como sabemos, foi vergonhosamente censurado, após o texto ter sido aprovado pela Censura Federal. A idéia era quebrar a espinha dorsal daqueles artistas e produtores que se aventuravam por um trabalho de resistência cultural, num país sob uma ditadura civil e militar. O diretor do espetáculo era Fernando Peixoto. Pois bem, no ano seguinte, estava ele em cena, dirigindo e atuando, num trabalho que marcou época: Um grito parado no ar. O texto de Gianfrancesco Guarnieri era uma espécie de autobiografia e reflexão coletiva de amplos setores artísticos, assim como uma metáfora do país, a partir dos termos em que era possível se expressar. E isso não era pouco.

Fernando Peixoto distinguia-se, pois, por uma capacidade inesgotável de se recriar e pensar por ângulos diferentes estratégias de construção de uma arte. A sua obra parece nos ajudar a compreender melhor os fios esgarçados do nosso tempo.

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