O diplomata sem papas na língua

Livro de ex-secretário-geral da ONU expõe atitude imperial dos EUA e resistência da indústria farmacêutica à luta contra AIDS

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Livro de ex-secretário-geral da ONU expõe fenômenos cruciais, como atitude imperial dos EUA e resistência da indústria farmacêutica à luta contra AIDS

Por Ladislau Dowbor

Resenha do livro Intervenções – Uma vida de guerra e paz

De Kofi Annan e Nader Mousavizadeh

Companhia das Letras, 464 páginas, R$ 63

Tradução: Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra

O ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan, escreveu um livro de leitura extremamente agradável e de riqueza informativa impressionante. Digo isto porque os textos de pessoas ligadas às Nações Unidas tendem a ser tão cuidadosos que frequentemente não dizem nada. Tipo do político ou do empresário, que questionado sobre um desastre afirma que será rigoroso, que tomara as medidas adequadas, encarregando as pessoas ou departamentos competentes. Quando? Ora, no momento oportuno. Não dizer nada é uma arte. Kofi Annan, liberado dos seus cargos, traz com voz tranquila e valores fortes, uma visão privilegiada,

Grande parte do seu interesse resulta, a meu ver, das posições centrais que ocupou no cenário internacional. Todos sabemos da fragilidade das Nações Unidas — ainda “nações” unidas, e não “povos” unidos, com tudo o que isto implica na necessidade de terminar aprovando o mínimo denominador comum. Ainda assim, depois de intermináveis negociações, no quadro de um Conselho de Segurança que data dos anos 1940, e de uma Assembleia Geral onde muita ilhota com status de nação e alguns milhares de habitantes tem voto igual à Índia, que reúne cerca de 20% da população mundial. Isto não impede que as grandes tensões geradas no plano internacional levem a uma corrida dos participantes para puxar para si o manto da legitimidade das Nações Unidas. Assim, com toda a fragilidade institucional, o secretário-geral Kofi Annan esteve sempre presente nos principais núcleos de conflitos e centros de negociação. Por dever de ofício, conversava com todos, era consultado por todos, e terminava tendo uma visão de conjunto privilegiada. É esta visão que Kofi Annan nos apresenta neste livro, que ele mesmo qualifica de “meu relato dos principais desafios que a comunidade internacional enfrenta hoje”.

O discurso é direto: “A ação militar empreendida por propósitos mesquinhos, sem legitimidade global, ou sem previsão das consequências – como no caso do Iraque –, pode ser tão destrutiva quanto os males que ela se dispõe a combater. O conceito global emergente de “responsabilidade de proteger” foi criado como um princípio universal de resguardo dos direitos humanos fundamentais – não como uma autorização para fazer a guerra em nome da paz”. (pág. 15) Nesta linha, e detalhando por exemplo as negociações no caso do Iraque, comenta que “todos os lados começavam a desconfiar que tudo aquilo tinha muito menos a ver com as supostas armas de destruição de massa do Iraque do que com a questão de quem seria o supremo árbitro da legitimidade do uso da força no sistema internacional” (411)

O conflito israelense ocupa naturalmente, um espaço importante, e em particular o desequilíbrio gerado pelo fato do principal ator ser de outro externo: “Os Estados Unidos usam seu poder de veto para proteger os israelenses de qualquer julgamento ou pressão internacionais, ainda que legítima, paralisando o Conselho em relação a um dos principais conflitos do mundo” (307) Há muitas pérolas no livro. Ao apontar para Ariel Sharon a ilegalidade de erguer uma muralha que avançava sobre terras palestinas, este lhe responde que “boas cercas fazem bons vizinhos”. “É verdade, respondi, desde que as cercas não sejam erguidas no meio da terra de seu vizinho”. (304)

As negociações com as corporações transnacionais, poderes políticos não declarados mas muito presentes na esfera internacional e na composição de muitos governos, também aparecem com força no livro. No caso da AIDS, por exemplo, “íamos ajudar milhões de pessoas que estavam morrendo, tendo o conhecimento científico necessário para isso, ou não? Foi à sombra dessa pergunta, persistente e inexoravelmente simples, que Peter Piot, Gro Brundland e eu marcamos uma série de reuniões com representantes dos principais laboratórios farmacêuticos, a primeira delas realizada em março 2001, em Amsterdam. Em decorrência dessas reuniões e do processo coletivo de pressão e envolvimento no mundo todo, os laboratórios farmacêuticos começaram a ceder. Isso levou a uma drástica queda do custo do tratamento nos países em desenvolvimento. O preço das drogas caiu de 15 mil dólares por ano para 150 dólares, ou 0,50 cents por dia. O impacto foi colossal” (293).

Kofi Annan detalha a errática luta contra o terrorismo, onde dimensões militares foram priorizadas, relativamente às medidas que favorecem o desenvolvimento: “Um dos aspectos de cruel ironia dessa mudança é que o desenvolvimento internacional é parte essencial da luta de longo prazo contra o terrorismo”. Na realidade, “a globalização e a privatização por si sós não conseguem ajudar os países mais pobres, já que eles carecem de infraestrutura e capital humano para atrair esses investimentos”. (281)

O livro não expressa, de maneira alguma, memórias de aposentado. Traz todo o vigor de alguém que deixou o cargo mas não a presença internacional que resulta da sua respeitabilidade. E o olhar é também para o futuro. ”As Nações Unidas do século XXI devem criar novas parcerias, atender às necessidades das pessoas e guiar-se pelo princípio segundo o qual a soberania nacional nunca pode ser usada como escudo protetor do genocídio e de violações de direitos humanos. Se quisermos enfrentar com sucesso os desafios da era global, é preciso propor uma visão muito mais ampla do que seja segurança – integrando paz, desenvolvimento, emancipação das mulheres e direitos humanos. É preciso atuar efetivamente nos quatro desafios principais do século XXI: paz e segurança, crescimento com desenvolvimento, respeito pelos direitos humanos e o império da lei”. (34)

As próprias Nações Unidas devem ser repensadas nesta perspectiva. “Eu sempre disse que as Nações Unidas devem ser uma entidade não só de governos, mas de povos, já que é dos povos, e não de governos, que o poder emana em última instância”, envolvendo também uma “robusta sociedade civil”. (261)

Uma leitura que flui, e nos traz um manancial de informações sobre os bastidores das tensões internacionais, e também dos logros, como o pacto pelos Objetivos do Milênio. Há milhares de análises sobre estes temas. Mas ouvir um protagonista multilateral, que estava no centro do picadeiro, enriquece muito. A tradução, de Donaldson M. Garschagen e Renata Guerra, é impecável.

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