O Circo e o palhaço como personagens de resistência

Em SP, grupo de artistas promove encontros semanais em defesa das tradições circenses e da “maluquice” — a atitude de insurgir-se contra um mundo monótono e previsível

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Em SP grupo de artistas promove encontros semanais em defesa das tradições circenses e da “maluquice” — a atitude de insurgir-se contra monotonia e previsibilidade do mundo

Por Carolina Ito | Imagem: Pablo Picasso, Palhaço (1971)

No histórico Café dos Artistas, que fica no interior da Galeria Olido, centro de São Paulo, são realizados encontros semanais para pessoas que se interessam por uma arte milenar e pouco conhecida em suas reflexões mais profundas: a palhaçaria. Os Encontros de Estudos da Palhaçaria (EEP) existem há três anos e trazem artistas para apresentações de números, exibição de filmes e troca de experiências.

Os encontros ocorrem no Centro de Memória do Circo, que fica no piso superior da Galeria Olido, todas as segundas-feiras, das 14 às 17h. São abertos ao público e não apenas aos artistas que desenvolvem trabalhos ligados à palhaçaria. Bianka Bélaváry, uma das idealizadoras do projeto, ressalta que é importante que os encontros não sejam fechados para artistas, porque muitos palhaços vão aos encontros para ter feedbacks sobre suas performances.

O Largo do Paissandu, região onde está localizada a Galeria Olido, ficou conhecido historicamente como um ponto de encontro de artistas de todo o Brasil, sobretudo no início do século XX. Nessa época, havia uma lona de circo do palhaço Piolin montada no Largo. Piolin foi um grande representante da arte circense e o dia de seu aniversário (27 de março) foi escolhido para comemoração do Dia do Circo no Brasil.

Na década de 1950 o circo viveu sua era de ouro e todas as cidades pequenas ou as periferias das grandes cidades tinham lonas montadas. Com o passar dos anos, conta um dos coordenadores do EEP, Rodrigo Bella Dona, os pequenos circos foram perdendo influência e falindo. Os artistas circenses eram estigmatizados, vistos pelos moradores das cidades como bandidos e ciganos, o que contribuiu para a decadência, além de não conseguirem acompanhar a cultura modernizadora do país

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Danilo Peres, Camila Scatena, Rodrigo Bella Dona, Bianka BВlavаry, Alex Santana e Thiago Silva, do EEP | Foto: Thiago F. Albino

“Da década de 1970 para cá, o palhaço vira outra coisa no Brasil, ele existe sem a lona, conta Bella Dona, destacando que foram surgindo outras figuras na mídia e nos espetáculos teatrais, como Hugo Possolo, um artista que é referência para os palhaços de hoje e que tem uma extensa carreira na palhaçaria.

Hugo Possolo: um palhaço sem lona

No encontro de número 101, o convidado foi Hugo Possolo, fundador da Companhia dos Parlapatões, idealizador do Centro de Memória do Circo e da SP Escola de Teatro. Sua experiência como ator e palhaço começou na adolescência, quando se apresentava em festas infantis e fazia palhaçadas na faculdade de jornalismo, como forma de protesto político.

Depois de conhecer a peça Ubu, lançada pela companhia Teatro do Ornitorrinco, em 1985, que misturava encenações de circo e teatro, decidiu que era esse o caminho que queria seguir nas artes. Ele sentia-se desconfortável em lidar apenas com o público infantil, já que a função inicial do palhaço, antes do circo, era de entreter as famílias nas feiras populares, o que incluía crianças e adultos.

Viveu por anos apresentando-se na Praça da República e no Parque do Ibirapuera e acabou formando um grupo com outros colegas que se juntaram às performances. Na década de 1990 eles fundaram a Companhia dos Parlapatões. Hoje, o espaço dos “Parlapas”, que fica na Praça Roosevelt, é um ponto de encontro de artistas 24 horas e, além do teatro, possui um bar, que ajuda a equilibrar as contas da companhia. “Assim como a pipoca era vendida no circo, a gente vende cerveja”, brinca Possolo.

O “ser” palhaço

Depois de ouvir a história apaixonante de Possolo, uma questão parece latente: afinal, por que se dedicar à palhaçaria? Em uma conversa descontraída, ambientada pelo histórico Café dos Artistas, os coordenadores do EEP contam sobre suas carreiras e como se tornaram palhaços.

170328_O convidado Hugo Possolo fala sobre sua carreira como palhaЗo e a criaЗ╞o da Companhia dos Parlapatфes

Hugo Possolo, criador dos Parlapatões | Foto: Thiago F. Albino

 

Bianka Bálaváry, a palhaça Borbulha Bella Varry, conta que, durante sua formação como atriz, sempre foi escalada para interpretar papeis cômicos, além de se interessar pelas artes circenses, graças aos encontros no chamado “Beco do aprendiz”, na região de Pinheiros, em que artistas se reúnem para treinar seus números. Para ela, “o palhaço representa o ser humano, cheio de defeitos, que erra, que cai, que fracassa e ri disso”.

A história de Rodrigo Bella Dona, o palhaço Belinha, é semelhante. Para ele, a palhaçaria exige, antes de tudo, a auto aceitação: “você tem que aceitar seus defeitos, rir deles e fazer com que outras pessoas riam com você”.

“Quando você é ator, você não tem problema em interpretar qualquer papel. Quando você é palhaço, você tem que mostrar aquilo que você é, não pode se vestir de nada”, conta Thiago Silva, o palhaço Naná O Fantástico. Ele possui formação em história da educação, mas a paixão pela palhaçaria está presente na maior parte dos seus estudos.

Camila Scatena, produtora do EEP, conta que fez um curso oferecido pelos Doutores da Alegria (ONG dedicada a ajudar crianças em recuperação em hospitais, através da palhaçaria), mas não conseguiu levar a prática adiante, reconhecendo a complexidade que envolve ser palhaço.

Alex Santana, o palhaço Flã de Paçoca O Lindo, também passou pelo curso dos Doutores da Alegria e conta que sempre teve encanto pelos palhaços do circo e da TV, como a dupla “Atchim e Espirro”.

Danilo Peres era músico e decidiu fazer teatro após criar espontaneamente um personagem humorístico, que depois se tornou o palhaço Pescoço. Ele possui uma memória afetiva com o circo, pois o avô tinha o sonho de ser palhaço de picadeiro. “Ninguém te ensina a ser palhaço, você descobre”, diz Danilo.

Todos concordam que o grande desafio em ser palhaço é se despir das próprias amarras, o que nem sempre é algo prazeroso. Como constata Bélaváry, “não é fácil ser palhaço, você se expõe porque está no lugar do ridículo”. Bella Dona conta que a lenda é de que não existe palhaço com menos de 40 anos, pois só a experiência e a ousadia a cada performance é que formam o artista.

Mas também há algo de catártico e terapêutico nessa experiência. Bella Dona conta, inclusive, que muitas pessoas fazem oficinas de palhaço, não para seguir na carreira, mas para superar os medos, inseguranças e vergonhas.

“O nariz do palhaço é a menor máscara do mundo, a que menos esconde e a que mais revela”, disse Luís Otávio Burnier, um dos fundadores do grupo LUME, que deu origem ao Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp, na década de 1990.

Disparadores de qual riso?

Jovens e crianças, principalmente de grandes cidades como São Paulo, dificilmente têm contato com o circo. O que invade o imaginário são os palhaços midiáticos, que estão nos programas de televisão e que vendem seus personagens como franquias dos mais diversos produtos. “A visão que a criança de hoje tem do palhaço é a do Ronald McDonald e do Patati Patatá”, explica Bella Dona.

Saber detectar as sutilezas e variações da piada ao longo do tempo é algo que vai muito além das performances exageradas dos personagens da televisão. Possolo afirma que “uma piada não é só uma piada, tem ideologia, pode ser transformadora ou preconceituosa”. Porém, isso não significa que os artistas que lidam com o humor não devam abordar assuntos arriscados. Ele acredita que “o ponto de vista de quem se ofende com a piada deve ser colocado”. “O palhaço é um disparador de riso. O artista precisa ter a consciência sobre qual tipo de riso quer provocar”, complementa Bella Dona.

“Tá faltando um pouco de maluquice”

Com essa frase, Possolo encerrou sua fala no 101º Encontro de Estudos da Palhaçaria, falando do contexto político e artístico no Brasil. E que maluquice seria essa?

Para Bella Dona, a maior maluquice de hoje é a resistência. É lutar, por exemplo, para que o governo da cidade de São Paulo recorra da decisão de congelar mais de 40% da verba destinada à Secretaria de Cultura, medida anunciada no primeiro mês da gestão do prefeito João Doria. E ir além: “maluquice é querer 80% a mais de verba porque esses 40% já não suprem o que a gente precisa”, afirma. Para Bélaváry, “maluquice é a classe artística se juntar, não só o circo com o circo ou a dança com a dança. Como artista você tem que buscar parcerias, se arriscar, se jogar”.

No dia 27 de março, Dia do Circo, foi realizada o “II Grande Ato dos Trabalhadores da Cultura de SP”, organizado por artistas de diversos segmentos, que foram às ruas protestar contra o congelamento da verba e contra os projetos do atual secretário municipal da cultura, André Sturm, que já interrompeu programas de fomento ao teatro, à dança e ao circo.

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