O atravessamento das cidades que nunca dormem

O que resta de verdadeiramente nosso por detrás de tantos pactos e despedidas — leais e desleais — firmados com os cenários por que passamos?

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Os lugares em que vivemos nos habitam. Mas então, o que resta de verdadeiramente nosso por detrás de tantos pactos e despedidas — leais e desleais — firmados com os cenários por que passamos?

Crônica de Juliana Magalhães

Não há em mim espaço deserto que não seja tomado pelo desassossego de todas as cidades. Estranhamente, todas elas compõem um plano único que entrelaça passado, presente e futuro com seus significados desfigurados e que formam em cada um de nós um grande complexo caótico, como uma grande cidade e seus aspectos confusos — e difusos — de todos esses tempos. O que resta de verdadeiramente nosso por detrás de tantos pactos e despedidas — leais e desleais — estabelecidos com os lugares em que vivemos?

— Não sei. Tudo meu soa apenas como um eco da cidade.

Há poetas, como Charles Baudelaire e Mário de Andrade, que levam seus olhos para passear e partem da observação – e absorção – da cidade para construir suas obras poéticas a partir dos aspectos mais tumultuários e complexos desses lugares que, com a urbanização, nunca param de crescer. Para que as experiências nas cidades sejam experiências intensas e transformadoras, faz-se necessário sermos um pouco flâneurs: levar os olhos para passear e nos abrir aos afetos desses conglomerados.

Os lugares em que vivemos nos habitam: o clima atmosférico, a arquitetura, o chão de pedra ou asfalto, o trânsito, as pessoas, as esquinas, as cores, os cheiros e todo o cenário que nos envolve e nos consome, através de uma deslocação silenciosa e irremediável. Saímos de uma cidade carregando características suas conosco, conhecemos outras e mais outras que nos incorpora novas — e por vezes, desfazem velhas — propriedades. Até que um dia, ao atravessar a rua de casa ou uma esquina qualquer, olhamos para dentro e não sabemos mais exprimir o que fomos e o que somos. Ainda que tentemos manter um vínculo íntimo entre esses dois estados, há uma desordem opaca entre o que fui e o que sou: os espaços que me condicionam me marcaram e me modificaram indefinidamente. Fui atravessada pela cidade.

Devemos estar sempre atentos aos caminhos que levam os nossos pés e nossos instintos: um lugar tem a capacidade de nortear nosso entusiasmo e perspectivas. Podemos respirar contentes em Minas Gerais, mas talvez não em São Paulo. Porém, nesse processo de respiração aflita, podemos descobrir e compreender aspectos do nosso corpo e da vida que jamais conseguiríamos alcançar caso respirássemos eternamente de maneira confortável. O que há de particular nas cidades que habitamos que fazem com que elas se construam em nós? A cidade do interior em que nasci me apresentou a beleza da natureza, por ser palpável e segura o suficiente para ser explorada. A que vivi há anos atrás sublinhou em mim meu fascínio mais incontestável: nessa cidade, conheci alguém que amava música e que eu amava como música. E só por esse pequeno detalhe, a cidade ganhou um significado etéreo e perpétuo. A que visitei por alguns dias, me fez gostar de prédios por estar mais perto do céu. Mas a outra, me fez gostar mais de casa, por estar mais perto do chão do quintal. A cidade em que morava, me fez detestar o aceleramento da vida urbana por considerar aquela experiência sem alma, sem paz e sem tréguas. Mas a que moro me fez inflexível à lentidão, pelo oposto total: excesso de paz, excesso de alma. As cidades em nós se acumulam, se encontram, desencontram, se destroem e se confundem.

A saída de uma cidade nunca se trata de um adeus irrefutável, pois a carregamos continuamente — conscientemente ou não —  nos olhos, nas predileções, e nos poemas que não foram e jamais serão escritos. Ao longo de nossas mudanças contínuas, somos libertados e aprisionados pelas paisagens numa compulsão sem igual.

O que a cidade faz morrer e nascer em nós durante o tempo?

– Não sei. Só sei que ela é responsável pela insustentável ressaca de todos esses acúmulos.

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