O aluno de romance Oswald de Andrade

Trilogia “Os Condenados” acompanhou escritor modernista por doze anos. Experimental, autobiográfica, paulistana, permitiu a ele expulsar todos os seus fantasmas

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Trilogia “Os Condenados” acompanhou escritor modernista por doze anos. Experimental, autobiográfica e paulistana, permitiu a ele expulsar todos os seus fantasmas

Por Mário da Silva Brito, na série especial “Oswald 60”

Ao longo dos trechos do ensaio que o leitor poderá ler agora, o historiador Mário da Silva Brito analisa a trilogia que compõe o romance “Os Condenados”, de Oswald de Andrade.

Com tais fragmentos, retomamos a mesma estrutura que foi empregada anteriormente, por ocasião da publicação do estudo de Antonio Candido acerca da dialética vida e obra, presente de forma aguda no líder modernista.

Desse modo, procuramos extrair aqueles pontos que julgamos essenciais. Esse trabalho foi feito com cuidado a fim de que não comprometesse o entendimento dessa introdução meticulosa*.

Importante esclarecer: os romances que fazem parte da trilogia foram lançados em épocas diferentes, chegaram a receber nomes distintos do que vemos agora e, quando agrupados, foram chamadas originalmente de “Trilogia do Exílio”.

Os tempos passaram. Em 1941, com o autor ainda vivo, o livro recebe uma edição definitiva.

E é com esta que o historiador trabalha, embora faça às vezes, conforme veremos, referência ao nome que primeiro consagrou o tríptico.

Assim, o leitor poderá acompanhar a sua bela escrita, a propósito de “Os Condenados”, lembrando sempre que o romance é composto, ao todo, por três obras: “Alma”, “A estrela de Absinto” e “A Escada”. (Theotonio de Paiva, editor da série “Oswald60”)

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O Aluno de Romance Oswald de Andrade

Por Mário da Silva Brito

No espaço que vai de 1922 a 1934, ou seja, da estréia de Oswald com Os Condenados – a Alma de agora – até o aparecimento de A Escada Vermelha, outros livros dele surgiram, mas cujo roteiro estético discrepa da Trilogia do Exílio, pois revolucionam a concepção de romance e poesia até então em vigor, radicalizam as conquistas da “liberdade de criação artística” propugnadas pelo Modernismo. São eles: Memórias Sentimentais de João Miramar (1924), Pau-Brasil (1925), Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927) e Serafim Ponte-Grande (1933).

Assim, no conjunto da obra oswaldiana, aparecida nesses doze anos, há duas direções, dois rumos, dúplice inventiva: a que caracteriza os recursos estilísticos e estéticos da Trilogia do Exílio, e a que, em prosa e em poesia, marca a sua visão de extremada avant-garde e lhe confere lugar à parte no quadro das letras nacionais e mesmo do Modernismo. São diretrizes que coexistem no espaço e no tempo, mas brigam entre si, se opõem uma à outra, contradizem-se em vários pontos e aspectos. Mas, saindo da mesma pena, da mesma inteligência inquieta e criativa, guardam entre si, no fundo, um parentesco subterrâneo, se assim se pode dizer, uma área comum de crítica e análise da vida e do mundo. Já se disse que o grande escritor escreve sempre o mesmo livro sob forma e tessitura diferentes, pois sendo sua temática fruto de uma dada cosmovisão, difere na aparência para assemelhar-se na essência. A Oswald de Andrade essa afirmativa pode ser pertinentemente aplicada, pela constância com que aborda determinados assuntos, fixa situações, retrata caracteres, surpreende, apreende e compreende o universo e os homens.

A intermitência na publicação da Trilogia do Exílio – essa demora de cerca de um decênio para a sua entrega total ao público – decorre de vários fatores, uns exteriores, outros mais profundos, tais como, sua ausência do Brasil e consequente estágio europeu, em Paris principalmente, quando descortina outros meridianos artísticos que vão informar e enformar-lhe a obra de vanguarda; sua atribulada vida sentimental; seus negócios quase sempre difíceis e atabalhoados; sua preocupação em rever e refundir o texto do que redigia – (“um romance não se faz sem um longo recolhimento ou sem uma vocação excepcional e irrevogável”, pensava ele); – a atividade polêmica que exerceu; as reviravoltas econômicas por que passou; a militância política que empreendeu; o seu temperamento perdulário e dispersivo, e o gosto de viver o próprio romance de sua vida.

[…]

Aos olhos de hoje, esses romances – Alma, A Estréia de Absinto e A Escada – representam os anos de aprendizagem do escritor — é preciso não esquecer que foram concebidos e basicamente redigidos entre 1917 e 1921. Assim, as objeções a eles outrora levantadas soam ingênuas, tacanhas e obsoletas, retratam bem o atraso cultural e intelectual do Brasil de então. O próprio Oswald se incumbiria de levar às últimas consequências as ainda tímidas inovações que introduzira no estilo, na linguagem, na estrutura e na técnica da ficção brasileira com o volume inaugural da Trilogia do Exílio. “A revolução modernista eu a fiz mais contra mim mesmo” – afirmaria Oswald. E explicando-se: “Eu temia era escrever bonito demais”; “se eu não destroçasse todo o velho material linguístico que utilizava, amassasse-o de novo nas formas agrestes do modernismo, minha literatura aguava e eu ficaria parecido com d’Annunzio”. Foi o que fez. O aluno de romance parte de Os Condenados – aluno já rebelde e arreliento — para as aventuras posteriores bem mais ousadas e surpreendentes.

Pesquisa de estilo e de técnica romanesca

Os romances que compõem a Trilogia do Exílio estão impregnados das experiências pessoais de Oswald de Andrade, refletem aspectos de sua autobiografia e decorrem também da sua observação do ambiente social paulistano às vésperas da Semana de Arte Moderna: em Alma surgem intelectuais – poetas, escritores e jornalistas – representativos da inteligência mais tradicional, se bem que alguns já cultuem e até venerem Anatole France e Baudelaire; em A Estréia de Absinto e A Escada, os modelos são principalmente os seus companheiros de geração, personagens que lembram Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Menotti dei Picchia, entre outros, ou uma mistura dessas personalidades; Jorge D’Alvelos é, externamente, o escultor Victor Brecheret, e, em profundidade, o próprio Oswald, que também se encarna em Carlos Bairão, possuidor de um Cadillac: como se sabe, o romancista tinha um automóvel dessa marca, de cor verde, que ficou famosa, e na qual o poeta de Paulicéia Desvairada o via “mariscando gênios na multidão”.

O meio intelectual, que trata com ironia e alguma piedade, notadamente em Alma, irá reaparecer, sob ângulo joco-satírico, nas Memórias Sentimentais de João Miramar e em Serafim Ponte Grande, sendo que neste configura rude e criticamente todo o conjunto cultural brasileiro, seja passadista ou modernista . O livro busca realizar o processo da “estupidez letrada”, da “sociedade feudal que pressentia”, dos boêmios antíteses dos proletários, da classe dominante, e de si mesmo, como componente da burguesia, “de que mais que aliado, fui índice cretino, sentimental e poético” – conforme suas próprias palavras no prefácio autocrítico de Serafim Ponte Grande. Mas esse mundo – de que é expoente e que agora revive em termos de sátira candente – está esboçado, esfumadamente entrevisto, no tríptico de Os Condenados. É o seu rascunho feito a capricho.

Artisticamente elaborado, tem como preocupação dominante “o culto da forma e o cuidado pela estrutura do livro”, para usar palavras de Antônio Cândido no ensaio “Estouro e Libertação”, incluído no volume Brigada Ligeira, até hoje valioso estudo sobre a ficção oswaldiana. “Nota-se n’Os Condenados, antes do mais – escreve o ensaísta – uma técnica original de narrativa e uma procura constante de estilo. Um esforço de fazer estilo”. Aliás, Oswald, em depoimento pessoal ao autor desta introdução e também em declarações à imprensa, revelou que buscava, nos seus primeiros livros, a escrita artística, laboriosa, dos irmãos Goncourt – autores que os críticos empenhados em descobrir influências jamais citaram em relação ao romancista de São Paulo. Pesquisa de estilo e de técnica original na composição romanesca – e que pesquisa! – são igualmente João Miramar e Serafim Ponte Grande.

As coordenadas estilísticas e de estruturação de Os Condenados foram os pontos que deram singularidade a essa obra, que lhe conferiram lugar de destaque quando do seu aparecimento. Eram uma novidade, um rompimento com as normas de concepção e realização rotineiramente aceitas – coisa que logo saltou aos olhos dos exegetas do tempo, que o louvaram ou censuraram precisamente pelas tentativas inovadoras.

Na verdade, Oswald, inaugurando o método cinematográfico na ficção brasileira, trazia para ela a síntese narrativa, descortinava “processos rápidos de desenvolvimento do enredo, a abolição das ‘passagens’ de tão parco sentido literário”, conforme ensina Sérgio Milliet. Oswald orgulhava-se mesmo de haver introduzido, entre nós, a técnica de contraponto, de Huxley, praticando-a antes até do que o famoso escritor inglês, fato este registrado pelo ensaísta de Sal da Heresia.

Ao assim proceder – ou seja, ao valer-se de recursos sugeridos pela gramática e pela sintaxe do cinema, ao expor de modo contrapontístico a trama, ao recorrer à simultaneidade de cenas e situações – Oswald abria caminho para o romance fragmentário, de que irá ser o pioneiro e o mais notório cultor, sendo seus marcos João Miramar e Serafim Ponte Grande. Também sob este aspecto, Os Condenados são o gérmen dos aludidos livros, que levam às últimas conseqüências a invenção anunciada no romance de estréia.

A oração fúnebre de uma época

Se em 1922, Cândido Motta Filho afirmava que Oswald em Os Condenados focalizava “o lodaçal da existência, os privilegiados da desgraça, os conciliábulos do vício” – o romance gira em torno da prostituída Alma, do cáften Mauro Glade e do apaixonado e suicida João do Carmo; se Carlos Drummond de Andrade, no mesmo ano, lá na sua Minas Gerais, sentia que o “romancista sabe torturar e sabe emocionar como os russos”, observando que “há nele uma dor positiva, flagrante, uma dor nua”; se, em 1939, Prudente de Moraes Netto supunha que Os Condenados e A Estréia de Absinto “eram portadores de pronunciados vestígios de d’annunzianismos” e os definia como “qualquer coisa como um romance russo adaptado pelo cinema italiano”… […]

Sérgio Milliet, relendo a Trilogia em setembro de 1941, ao anúncio de sua nova publicação, conclui que “tanto pela data da primeira edição como pela técnica do romance, a síntese psicológica, a preocupação realística, o valor da documentação sociológica e o estilo, o livro de Oswald de Andrade classifica-se como obra precursora”. Depois de apreciar o aspecto técnico do romance – a que já se aludiu neste estudo – o crítico paulista detém-se no exame da síntese psicológica e consigna que o autor “abandona a introspecção fastidiosa … em benefício do gesto expressivo, daquilo a que os sociólogos norte-americanos chamam atitudes reveladoras”. Ressalta, depois, que a preocupação realista em Oswald é “antes de mais nada a coragem de olhar, de olhar para ver”, é o culto “da vida, com suas contradições”, banindo assim “o preconceito das personagens heroicas, criadas de toutes pièces para defesa de uma tese, e apoiando o seu realismo “em sólida documentação sociológica”. Daí acrescentar: “A obra de Oswald é, até certo ponto, uma análise literária de processos sociais. E uma análise baseada em pesquisas, em trabalho de campo demorado e paciente. Aliás, quem lhe conhece os cadernos de anotações bem sabe a que ponto sua observação é cuidadosa e objetiva”. Quanto ao estilo destaca “o valor de inovação de sua frase curta, incisiva, de um colorido intenso” e mostra que ele como que pratica “o expressionismo trágico”. Por fim, logo após observar que o escritor “é brilhante com sentimentalismo e inteligência do coração” afirma não ignorar que o tríptico “tem defeitos, e graves”. “Uma crítica severa – finaliza – que não levasse em conta sua precedência na história do moderno romance brasileiro, os anotaria facilmente. Mas com todas as suas falhas é uma obra que ficará e que merecia a reedição prometida. Oswald foi um precursor e seu livro permanece, vinte anos após o seu aparecimento, digno de leitura e de discussão”.

Mais recentemente – com a reavaliação da obra oswaldiana – Haroldo de Campos louva na Trilogia “certas transposições felizes da linguagem da mente (num estado de delírio ou narcose), certos momentos colimados de imagística visual, além da procura de expressão para o conflito entre a formação religiosa e o engajamento político, patente no sincretismo emocional e ideológico que assinala passagens como a do delírio de Jorge, interpelado pelo ‘camarada Deus’ (este conflito, de resto, sobreviverá no ‘sentimento órfico’, no ‘ateísmo com Deus’ das cogitações do último Oswald)”.

Essas observações importantes, seguem-se à classificação dos três primeiros romances de Oswald como expressivos de uma prosa crepuscular. É uma classificação correta, pois que a obra, em linguagem adequada, crepuscular, reconstitui um momento de ocaso, o entardecer de uma época, um instante de transição entre um Brasil que morre, e outro que nasce, um Brasil passadista e decadente em conflito com o que estava ingressando no século XX. Em Alma evoca-se a agonia de uma concepção de mundo, “o entulho art nouveau”, que Haroldo de Campos nele detecta, não marcava somente as letras inaugurais do escritor, mas toda a sociedade brasileira de então, todo um estilo de viver. A derrubada de velhos mitos começaria com a Semana de Arte Moderna, e com as revoluções políticas iniciadas em 1922. Os Condenados são a lápide tumular desse tempo. Oswald fez a burilada, estilizada, oração fúnebre dessa hora histórica na primeira fase de sua ficção. Mais tarde, em Serafim Ponte Grande, fará o epitáfio da burguesia.

[…]

O Diário da garçonnière

Se em Os Condenados é possível perceber em gérmen ou fermentação, os assuntos, personagens e clima que serão constantes na obra do romancista, é preciso acentuar que, tanto o primeiro volume da Trilogia do Exílio, quanto o par Memórias Sentimentais de João Miramar – Serafim Ponte Grande, foram primitivamente gerados em O Perfeito Cozinheiro das Almas deste Mundo. É o diário da garçonnière do ficcionista. Dele vários trechos foram reproduzidos em suas Memórias. Aí se narra a história de seus amores com Deisi – apelidada Miss Cíclone, com acento no í – cujo comportamento livre e alguns vagos indícios, agigantados pelo ciúme, o levam a supor mantenha misterioso romance com “um sujeito esquisito do Braz” e frequente “pensão de rapazes” na Rua Anhangabaú. Conta-se ainda os desentendimentos familiares da moça, a prática de um aborto, sua doença e morte.

[…]

Balanço final

Muitos outros ângulos da novelística oswaldiana dessa fase ainda poderiam ser abordados. Por exemplo, o caráter urbano e cosmopolita da Trilogia, a topografia paulista e paulistana em que se desenvolve, o censo e o recenseamento de sua população fictícia, a constituição social dos personagens que nela habitam – em linhas gerais integrada pela burguesia, uma ascensional e outra em declínio; pequenos funcionários, públicos ou particulares; os representantes dos diferentes meios artísticos; modestos trabalhadores autônomos, que vivem de biscates; capitalistas e defensores da ordem pública; profissionais liberais; mais o lumpen-proletariat do que o proletariado propriamente dito. Esses grupos todos, acrescidos do campesinato e de outras categorias sócio-profissionais vão aparecer, de novo, em livros mais tarde publicados.

O que já se disse nesta incompleta introdução, é suficiente, no entanto, para salientar alguns valores e complexidades de obra que marcou uma época na literatura brasileira e abriu caminhos, não só para a atividade intelectual do próprio autor, mas também para escritores que, depois dele, viriam enriquecer e ampliar os quadros de nossa novelística.

Estes apontamentos visaram, antes de mais nada, compreender – didaticamente até – a produção literária inaugural do escritor, situá-la no tempo e, inclusive, na biografia do romancista, encará-la em sua condição de conjunto precursor a partir do qual nossa ficção percorreria outros caminhos, quer quanto às suas possibilidades de fatura literária, de pesquisas estéticas, quer quanto ao conteúdo, estruturação, sentido humano, mensagem social e apreensão das realidades nacionais – caminhos que vão encontrar no próprio Oswald um valor renovado, um crítico vigilante de si mesmo e dos outros, um exegeta atilado e imprevisto, nem sempre justo, mas sempre útil, instigante e polêmico.

Os Condenados constituem um roman fleuve – processo de composição que ao longo dos anos seduziu Oswald, ansioso por captar todo o complexo sócio-econômico-cultural sugerido pela diversificação da vida paulista e paulistana. Mas o escritor, por seu temperamento amante da síntese e pela instantaneidade de sua inteligência, melhor se realizaria no romance fragmentário. Neste, suas invenções estilísticas, sua percepção rápida, seus cintilantes e ofuscadores flashes, se impõem de imediato, são diretos e incisivos, iluminam-lhe num relance as páginas inventivas e criativas.

Romance triste, pessimista mesmo – em que somente em A Escada resplende a esperança, ao anúncio de lutas por um mundo melhor – Os Condenados revolvem sem piedade dramas existenciais que são transposições artísticas de acidentada autobiografia, auto-análise de padecimentos que marcaram indelevelmente um espírito sensível e comovido, transferts psi-cológicos de um ser tumultuoso e tumultuário. Acima do retrato verista, estilizado, – e às vezes transbordante na linguagem, – de uma hora histórica, de uma época rica em sua problemática, de uma sociedade desarrumada e ainda sem perspectivas críticas quanto ao seu destino, uma sociedade escapista e acomodada, ciosa do seu injusto status quo – Os Condenados são um romance confessional, catártico, um incontrolável vomitório das confusões interiores de Oswald e do que aprendera fosse o mundo. Nesse tríptico o romancista expulsa todos os seus fantasmas. É o Oswald que se utiliza do romance “como forma de explicar a vida e portanto de orientá-la”, como, certa vez, definiu ao gênero.

* Publicada, em 1970, na primeira edição completa das obras de Oswald de Andrade, este projeto editorial foi uma iniciativa da antiga Editora Civilização Brasileira.

 

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