Ler primeiro: Domingo de Ramos

“Não houve dúvida. Assinalei três tentos. Cravei meu nome em estrela. A crônica enlouqueceu. Deixei a massa sem voz”

Francis Picabia

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“Não houve dúvida. Assinalei três tentos. Cravei meu nome em estrela no céu. A crônica enlouqueceu. Deixei a massa sem voz”

Por Fausto João Takashi | Imagem: Francis PicabiaVilica-caja

Assim como o ceticismo cega os intelectuais, a fé cega, cega os ignorantes, era o bordão do cronista, nos tempos do blá blá blá radiofônico.

Mas, comigo? Comigo não!! Necas de pitibiriba. Nunca. Nunquinha. Eu somente ria. Ria, dizia e fazia. Meus versos rugiam no verde-mar da grama cintilante; iluminada por refletores potentes ou pelo ensolarado do dia. Entre linhas retas, circulares e semicirculares; cercado por pencas de bandeiras. Centenas, milhares, bicolores ou coloridas. E apenas reprimido por uma. Que ironia. Que momento frustrante. Bem próximo do meu ápice, única e pequena. Ridícula, até. Sem amor ou paixão, me impedindo de fazer com que outras, outras tantas, tremulassem com doentia alegria. Tal qual um Jesus crucificado, eu era declarado culpado. Era adorado e odiado por uma multidão que pagava o espetáculo com o trocado do leite ou do pão.

O soberbo. Bruxo, mago, divino. A besta e o bestial.

Mas para mim!? Não! Eu era apenas o futebolista. Eu era o Ramos.

Vocês com seus olhinhos joviais, se pudessem perfurar meu crânio, com uma furadeira encantada, capaz de revelar minhas imagens mentais, veriam.

Eu comecei no Arapari. Na verdade Real de Arapari. Clube sem expressão do estado do Rio de Janeiro. Sou carioca, do morro do Lamento.

Em uma partida em que entrei já no segundo tempo, sentia como se barbantinhos dourados ou prateados, invisíveis como fios de náilon, estivessem amarrados aos meus pés, mãos, tronco, cabeça e membros. Meus passos, minhas arrancadas, meus toques na bola. Meus cruzamentos foram exatos. Minhas divididas foram favoráveis. Era como se eu houvesse ensaiado os passos de uma dança em que os adversários sabiam sua estranha coreografia da derrota. Naquele jogo não marquei gols. Eu ainda era lateral esquerdo.

Fui de lateral a centroavante, em meses. De garoto prodígio a titular absoluto. Sempre fui vascaíno. E fui jogar no Mengão. Certo que iria estrear numa quarta-feira à noite. Tive sorte. Uma contusão leve me fez estrear em um domingo, vejam vocês, um domingo de Ramos. Não houve dúvida. Não fugi da dividida. Assinalei três tentos. Cravei meu nome em uma estrela lá no céu. A crônica enlouqueceu com associações sem propósito. Continuei sendo simples e explosivo. Deixando a massa sem voz. Foram muitos os jogos, vesti muitas camisas. Nunca a do Vascão. Sempre me senti como um animal puro e, por vezes, besta e aprisionado. E fui assim, até o final. No entardecer da minha carreira eu já não era tão ensolarado. Saía dos treinos ou dos jogos sem dar qualquer resposta sobre minhas atuações ou intenções. Eu me mantive firme, apesar das minhas pálpebras já demonstrarem os vários domingos de ramos que atravessei.

Hoje neste quarto sem luz, nesta ausência de tudo, onde tudo provem de onde eu não sei. Minha mulher é quem me alimenta. Se há um jogo na TV, eu tento acompanhar, mas tudo acontece muito rápido, distante, e logo me canso. Minha medicação é no tempo cravado e eu desconfio que já esgotei meu tempo regulamentar. Pelo canto do olho, olho o céu pela janela, busco e encontro a estrela com meu nome. Aparece entre nuvens roxas como luzes de neon alaranjadas. Deduzo que não sejam reflexos de iluminações externas impressas temporariamente nos vidros da janela.

Eu já, há muito, nada falo. Meu silêncio é pleno. Entretanto, quando alguém se aproxima, eu desperto. Minhas mãos tremem. O cheiro da grama verde. O grito de gol. O calor humano que me seduz. Recolho forças e, ainda que solitário e sem resposta, digo: eu sou o Ramos…, eu sou o Ramos…, eu sou o Ramos…!

Meu nome é Fausto João Takashi. Cultivo muitos contos comigo. Contos de amor, contos do campo, contos de afeição, de escárnio, de solidão, e até contos fantasmas, esses, eu nunca escrevi. São contos que voam por ai, em todo lugar — nas prateleiras dos supermercados, debaixo das cerejeiras, nas portas das escolas –, e que talvez provavelmente, mesmo convivendo, eu nunca escreva. Sou um caminhoneiro aposentado que vive suas últimas primaveras, tenho 67 anos. Moro em Marília, junto das minhas hortaliças, da minha esposa e da minha única filha solteira, Elisa.

Vale a pena ler primeiro é seção de Outras Palavras dedicada à literatura. Foi criada e é editada por Fabiano Alcântara. Jornalista especializado em cultura, repórter de Música do portal Virgula, e colaborador de diversas publicações – como Valor Econômico e os sites das revistas TRIP e TPM –, Fabiano é também músico, baixista das bandas Mercado de Peixe e Lavoura e curador de festivais.Para ler edições anteriores da coluna, clique aqui.

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