Homens e Deuses: existe um cinema cristão?

José Geraldo Couto: “é possível ser cristão num mundo em que Deus é evocado para justificar ódio e violência?”

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Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo

A pergunta acima me veio à mente enquanto assistia a Homens e deuses, de Xavier Beauvois. Não me refiro, é claro, aos épicos bíblicos hollywoodianos, com seus imponentes Moisés, seus Cristos ensanguentados e seus atléticos Sansões. Nem à baixa exploração sentimental-comercial do “filão”, em filmes como os brasileiros Maria, a mãe do filho de Deus e Nossa Senhora de Caravaggio.

Penso, antes, nos dramas espirituais profundos e sublimes de Carl Dreyer (A paixão de Joana d’Arc, Ordet), de Robert Bresson (Diário de um pároco de aldeia, Pickpocket, Mouchette), de Maurice Pialat (Sob o sol de Satã), de Hitchcock (A tortura do silêncio).

É nessa vertente que se insere o belo filme de Beauvois. É essa linha que ele atualiza e problematiza. Sua situação dramática – um mosteiro trapista situado nas montanhas da Argélia dilacerada pela guerra civil – parece se organizar em torno de uma questão essencial: é possível ser cristão num mundo sem Deus, ou no qual o nome de Deus é evocado para justificar o ódio e a violência?

Ser cristão, evidentemente, não é apresentar-se como tal  (católico ou evangélico) da boca para fora, mas sim agir de acordo com ideais de renúncia e fraternidade supostamente ensinados pelo próprio Cristo. Por esse critério, nem o Papa (aliás, muito menos o Papa) é cristão. Mas os frades de Homens e deuses o são, ou tentam ser. São homens de carne e osso, portanto frágeis e contraditórios, mas têm como norte, como meta sabidamente inatingível, a integridade moral e espiritual.

Deus como horizonte

Com sua delicadeza sóbria, seu respeito profundo pelos personagens e sua busca, o filme me fez lembrar de um livrinho do escritor grego Nikos Kazantzakis (autor, entre outros, de Zorba, o grego e A última tentação de Cristo) chamado Ascese. Há no Brasil uma tradução excelente de José Paulo Paes. Pois bem: correndo o risco de uma simplificação grosseira, digo que a “ascese” do título consiste na construção paulatina de Deus pelo homem. Ou seja, Deus não existe a priori, é o homem que o constrói à medida que se eleva moral e espiritualmente, à medida que se desprende do que há de mesquinho e bestial em seu interior. Deus não é. Deus será. É um horizonte a ser buscado, ainda que saibamos que jamais será atingido.

Vale pensar também na canção Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil, cuja ideia é semelhante.

Assim como Deus é uma ideia para a qual se volta o desejo humano de elevação, talvez o cinema cristão – ou pelo menos aquele que me interessa – não exista enquanto veículo de uma doutrina pronta, mas como retrato de uma busca em andamento. Homens e deuses faz parte dessa busca.

Só mais uma palavra sobre o filme, cujo trailer segue aqui embaixo. Os atores que encarnam os monges estão todos admiráveis, exprimindo em poucos gestos, palavras e olhares toda uma gama complexa de sentimentos que vai da fé à hesitação e ao medo. Mas dois deles se destacam: o versátil Lambert Wilson, no papel do líder do grupo, frei Christian, e o veterano Michael Lonsdale (ator de Truffaut, Buñuel e Resnais), como o frei-médico Luc.

José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor, foi durante anos colunista na Folha, escreve suas criticas hoje em seu próprio blog e na revista Carta Capital.

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4 comentários para "Homens e Deuses: existe um cinema cristão?"

  1. Pedro disse:

    “(aliás, muito menos o Papa) é cristão” …?
    Caríssimo… o quanto você conhece sobre que papel deve desempenhar o Papa, quem ele é e em que está baseada sua conduta? Acredito que muito pouco pela sua afirmação…
    Me entristece a forma leviana com a qual os blogueiros, colunistas e etc. costumam se referir não só ao Papa, mas ao clero em geral.

  2. Roberto Dias disse:

    Eu também sou Cristão, mas não foi sempre assim. Tive que que escolher uma vida onde o temor a Deus me podaria das minha proprias vontades que percebi está levando ao fundo do posso… O proprio Paulo falou “Maldito homem que sou, o que quero fazer não faço mas o que não quero isso está sempre me perseguindo”
    O homem por sí só não consegue se conter dos seus desejos, mais cedo ou mais tarde ele termina cedendo.
    Eu ja tive várias esperiências com Deus… mas isso só acontece com quem crer.

  3. Cristiana disse:

    Sou cristã, ou pelo menos, tento ser. Cristãos são como os santos. Só quando morrem é que se pode dizer que o foram, pois antes, podem errar, humanos que são. Acho que como a maioria das pessoas, o autor tem uma visão “errada” do que é ser cristão. Viver a fé é a aventura de uma vida, cheia de altos e baixos, de buscas e incertezas, principalmente, cheia de humildade para se reconhecer pecador, e, portanto, falho. Sei por experiência própria que as pessoas esperam que sejamos perfeitos e sempre prontos a nos doar. Infalíveis. Não somos diferentes de ninguém. Somente tivemos a coragem de optar por algo sublime e diferente, mas que já tem 2000 anos. O caminho está descrito. Segue quem quer.

  4. reginaldo luciano de oliveira disse:

    Não sou cristão, mas falar de Deus não é tão simples assim, faço filosofia na unifesp e se tem varias teoriass a respeito de deus e de vários filósofos, mas nenhuma é tão simplista como vcs colocaram, se for pegar os filósofos medievais, padres da igreja, Boécio, no seu livro ” a consolação da filosofia” em que Boécio é condenado a morte e aparece a filosofia para dialogar com ele, criticando a fortuna, falando que tem a roda das fortuna e que estamos sujeitos a perder tudo, não podemos reclamar, as pessoas senterm mais quando perdem dinheiro, que quando perdem algum ente querido, eles dizem que deus criou o homem e ja faz parte de seu intelecto, sendo nosso intelecto incapaz de entender deus, mas eu sou mais a teoria panteísta de Espinosa

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