Filmar o que não se vê

José Geraldo Couto: “Flashbacks esparsos permitem ao espectador construir o passado desse pai misterioso – e da mãe, mais misteriosa ainda.”

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Por José Geraldo Couto, editor do Blog do Zé Geraldo

Assim como o vento ou a eletricidade, que só se tornam “visíveis” pelo efeito que causam (o movimento das folhas, uma luz que se acende), também o espiritual, o sobrenatural, o “além”, só se dá a ver por sua ação sobre a matéria.

Vai daí que o cinema, arte da superfície das coisas visíveis, tem se servido desde suas origens de dois caminhos, basicamente, para mostrar o que não se pode ver: a) os efeitos especiais mais ou menos pirotécnicos (de Méliès a Spielberg); ou b) o que eu chamaria, em falta de definição melhor, de uma mise-en-scène do espanto, um modo de sugerir o sobrenatural pelo efeito que produz na emoção dos personagens.

Um exemplo acabado do primeiro tipo seria Poltergeist. Exemplo supremo do segundo seria Ordet – a palavra, de Dreyer, em que nos convencemos de um milagre sem que haja um único efeito especial.

Claro que é possível, e com frequência acontece, uma combinação entre essas duas vias.

Num cinema de condições modestas de produção, como o brasileiro, optar pela primeira via é uma temeridade. Corre-se o risco do canhestro e do ridículo. Com raras exceções,  só os filmes brasileiros para o público infantil se arriscam nessa linha. Realizar no Brasil um Poltergeist seria impensável.

Até um cineasta como Martin Scorsese quebrou a cara, quando filmou A última tentação de Cristo, ao concretizar certas imagens bíblicas, como a do leão e da labareda falando com Jesus no deserto. Nem sempre é possível tornal literal o que é literário.

Salto no escuro

Todo esse preâmbulo é para falar do novo filme de Jorge Durán, Não se pode viver sem amor.

Se o longa anterior do cineasta, Proibido proibir, atinha-se aos limites de um estrito (e um tanto declaratório) realismo, este representa um corajoso salto no escuro, ou quase. O filme lida com premonições, poderes telecinéticos e, possivelmente, ressurreição.

Em resumo, trata-se da história de um menino (Victor Navega Motta) que vai ao Rio de Janeiro em busca do pai (num movimento oposto ao do protagonista de Central do Brasil). Acompanha-o a moça (Simone Spoladore) que o criou como filho, uma ex-namorada do pai desaparecido. Flashbacks esparsos e meio confusos permitem ao espectador construir até certo ponto o passado desse pai misterioso – e da mãe, mais misteriosa ainda.

Outras duas histórias aparentemente alheias a essa se desenrolam em paralelo: a de um jovem advogado desempregado (Cauã Reymond) e sua amada, uma dançarina de boate (Fabiula Nascimento); e a de um professor universitário (Angelo Antonio) e seu pai taxista (Rogério Fróes).

O modo como essas três linhas narrativas vão se entrelaçar é o grande trunfo do bom roteiro de Durán e Dani Patarra, premiado em Gramado, assim como a atriz Simone Spoladore. Alguém falou da semelhança dessa estrutura “multi-plot” com a dos filmes de Iñarritu roteirizados por Guillermo Arriaga. Mas acho exagero: não há no filme de Durán a compulsão barroca por multiplicar os caprichos do acaso que encontramos nos filmes da dupla mexicana.

Truques e dramaturgia

Um dos méritos de Não se pode viver sem amor, para voltar ao tema do início deste texto, é o comedimento com que lança mão de efeitos especiais para expressar os poderes paranormais do menino protagonista. Consciente da modéstia de seus recursos, Durán equilibra de modo satisfatório os truques técnicos e a dramaturgia, raras vezes descambando para o canhestro.

O filme está longe de ser perfeito. Algumas cenas – sobretudo os flashbacks – poderiam ser mais bem cuidadas, em termos de enquadramento e iluminação. Certos personagens secundários (os amigos do advogado, por exemplo) poderiam ser menos “chapados”.

Mas o que sobressai no conjunto é a saudável audácia de um diretor veterano (que filmou tão pouco: só quatro longas) em adentrar um terreno novo e perigoso, em vez de seguir caminhos já batidos.

A seguir, o trailer do filme.

José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor, foi durante anos colunista na Folha, escreve suas criticas hoje em seu próprio blog e na revista Carta Capital.

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